Esporte
“Mãe, eu quase fui lá na Vila Belmiros”
O sonho de Alef Manga
“Maluco do bem”, artilheiro do Volta Redonda saiu de uma favela de Santos para brilhar no Carioca. Intruso em safra estrelada na base do Peixe, ele deve disputar a Série A este ano
A mudança para o morro da Nova Cintra, em Santos, causou medo em Dona Marcela. Estavam sozinhos ela e o filho Alef, à época com 12 anos.Tinha medo por ele, que era brincalhão, conversador e fazia amizade fácil. E se virasse amigo de quem não devia? “Seja o que Deus quiser”, pensou. Era o lugar onde podia pagar o aluguel.
Uma tarde depois do trabalho, chegou em casa e o menino não estava. Começou a correr pelas ruelas da favela atrás dele. Numa esquina, ouviu a pista de alguns garotos: “Tia, ele ‘tava’ nesse beco aqui, mas entrou lá”. E Dona Marcela continuou a percorrer os labirintos. Chegou a se perder, as pernas doíam. Até que finalmente encontrou Alef, os pés pretos de sujeira e a prova do crime debaixo do braço: a bola. O nervosismo deu lugar ao choro.
Com um tom obstinado, Alef se adiantou na explicação: “Mãe, eu quase fui lá na Vila Belmiro, queria falar com o presidente que eu quero ser jogador do Santos”. O plano antes de ser interrompido era caminhar os três quilômetros que separam o morro e a Vila para fazer, também, outro pedido: queria dar uma casa para a mãe.
Aos 26 anos, hoje, o menino é conhecido como Alef Manga e ainda corre atrás desses sonhos. Não mais nos becos, mas nos gramados do país. E a sensação é de que seus objetivos estão cada vez mais próximos – embora não tenha seguido no Santos, onde chegou a jogar na base no mesmo período em que Neymar, Gabigol, Zeca, Thiago Maia e outros nomes daquela geração.
Alef vive sua melhor fase junto ao bom time do Volta Redonda, vice-líder do Campeonato Carioca e com grandes chances de conseguir uma vaga nas semifinais. Neste sábado, a equipe recebe o Botafogo, às 21h05.
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O bom momento é traduzido em gols. Em dez jogos disputados em 2021, pelo Carioca e Copa do Brasil, ele marcou 10 vezes. Alef é o artilheiro do estadual, com sete gols, à frente de nomes badalados como Fred, Cano e os ex-santistas Gabigol e Bruno Henrique.
Alef Manga dificilmente fica no Volta Redonda depois do Campeonato Carioca, apesar do contrato válido até novembro do ano que vem, com multa rescisória de R$ 2,5 milhões. Seu empresário conta que vem recebendo sondagens e que espera selar o destino do atacante pós-estadual até a semana que vem.
– Alguns clubes fizeram contato. Muita consulta e até umas situações mais concretas, mas nada fechado. Eu tenho um acordo com o Volta Redonda de que ele vai ficar até o final do Carioca e depois deve sair para algum clube da Série A – explicou Marlei Feliciano, CEO da Pantera Sports e agente de Alef, que disse também ter sido procurado por times da Rússia, do México e da Austrália.
Em entrevista ao ge, Alef Manga falou de tudo um pouco: dos treinos ao lado de Neymar e Gabigol no Santos às ocasiões em que quase desistiu de jogar futebol e foi parar na oficina mecânica do avô; da breve passagem por Portugal, da admiração por Bruno Henrique (de quem espera pegar uma camisa em breve) e do sonho de voltar a vestir a camisa do Peixe.
“TENHO QUE APROVEITAR ESSE MOMENTO”
Alef joga futebol desde os cinco anos de idade e começou sua trajetória no salão do clube Saldanha da Gama, em São Vicente, na Baixada Santista. Todos os dias Dona Marcela o levava de bicicleta: ela pedalando e ele sentado sobre o quadro por cerca de cinco quilômetros até a escolinha. Comprido e magricela, ele já tinha o faro de gols.
Aos 12 anos, ele foi convidado para jogar no futsal do time da Vila Belmiro. Alto, com passadas largas e boa finalização, Alef migrou para o campo, para ser centroavante. Nesse período, teve a oportunidade de treinar com nomes consolidados na elite do futebol brasileiro, como Neymar, Gabigol, Thiago Maia e Zeca. Foi intruso de uma safra estrelada.
– Às vezes passa pela minha cabeça que trabalhei com eles, e você vê onde eles estão. Por que eu também não posso estar lá? Por que eu também não posso mostrar meu trabalho? Eu tenho que saber aproveitar esse meu momento, tenho certeza de que Deus vai me colocar num clube grande. Estou tentando ajudar o Volta Redonda da melhor maneira possível.
Uma pena que, na única foto com Neymar (sua maior inspiração no futebol), num evento de comemoração organizado pelos pais dos meninos, seja difícil encontrá-lo.
Pelo Santos, Alef disputou campeonatos de base e conquistou alguns títulos. Mas, depois de quatro anos, sua trajetória no clube foi encerrada. Ele atribui sua dispensa à ausência de um empresário, alguém que pudesse conduzir sua carreira. Mas o atacante não guarda mágoas: seu sonho de vida (além de dar uma casa para a mãe) é voltar a vestir a camisa do Peixe.
“Meu pai e minha mãe conversavam muito comigo para não desistir, para correr atrás do meu sonho. E, desde pequeno até hoje, meu sonho é voltar para o Santos. Às vezes eu passo ali pelo muro do Santos, porque minha casa é ali perto, e penso que minha imagem poderia estar ali no muro um dia”, conta Alef.
Até por ser santista, a saída do clube foi um baque para ele sua família. Por um momento, chegou a desistir do sonho de jogar futebol profissionalmente e arrumou emprego de “faz tudo” na oficina mecânica de seu avô. “Ele atendia telefone, dava uma limpeza no escritório, varria. Era pau para toda obra”, conta a mãe.
Mas ele não se adaptou bem ao novo serviço. Tentou entregar panfletos nos semáforos e chegou a vender bala na rua. “Acho que a única coisa que eu sei fazer é jogar futebol”, reconhece. Foi então que uma nova chance surgiu. Desta vez, para jogar no modesto Jabaquara.
A FAMA DOS GOLS BONITOS
No Jabaquara, Alef disputou competições de base da cidade até se transferir para o futebol paranaense. Jogou por Maringá e Cascavel até que, em 2018, destacou-se no Campeonato Paranaense e atraiu olhares de Portugal. O jogador foi negociado por empréstimo para o Oliveirense, que disputava a Segunda Divisão portuguesa.
Um contusão grave no tornozelo, no entanto, abreviou sua estadia em terras lusitanas: “Fiquei umas quatro semanas recuperando o tornozelo, tomei ponto e tudo, sentia muita dor”. Sozinho, ele falava com a família apenas por telefone. Quando, enfim, se recuperou, não conseguiu apresentar o mesmo futebol e pediu para voltar.
Esse foi o segundo momento da vida em que Alef pensou em desistir do futebol, mas durou pouco. Logo ele recebeu um convite do Coruripe, de Alagoas, e jogou muita bola no estadual de 2019. O atacante, então com 23 anos, foi considerado uma das revelações do Alagoano. E o gol marcado na vitória poe 3 a 2 sobre o ASA recebeu o prêmio de mais bonito do campeonato.
00:00/02:37Veja a partir de 1:30 o gol de Alef Manga na vitória do Coruripe sobre o Asa em 2019
Alef depois dali defendeu o próprio ASA. Em 2020, transferiu-se para o Resende em sua primeira aventura no futebol carioca. Em seguida, foi para o Volta Redonda, onde está hoje.
A fama com os gols bonitos ficou impregnada, no entanto. Na primeira fase da Copa do Brasil, na classificação do Voltaço sobre o Castanhal-PA, Alef marcou o gol mais bonito da carreira ao receber pelo lado direito do ataque, dar uma caneta no zagueiro, um lençol no goleiro e completar para o gol vazio. “O pessoal brinca comigo, fala que foi cagado (risos)”.
Veja o golaço:
O Voltaço, porém, foi eliminado na segunda fase para o Juazeirense na última quarta-feira. A equipe do Rio abriu 3 a 0 no primeiro tempo, com gol de Manga, mas o time baiano empatou e se classificou na disputa por pênaltis. Alef desperdiçou uma das cobranças.
Solteiro e repleto de tatuagens pelo corpo, o atacante mora atualmente no alojamento do Volta Redonda e é descrito pelo pessoal do clube como um “maluco do bem”. “O Neto (Colucci, treinador) diz que eu falo com a minha própria sombra (risos)”, brinca. Esse jeito meio brincalhão e irreverente rendeu uma entrevista no mínimo pitoresca depois da vitória sobre o Fluminense, com dois gols dele.
EXPECTATIVA NO MORRO DA NOVA CINTRA
Alef Manga se lembra com carinho do dia em que entrou no Maracanã para jogar contra o Flamengo, com mais de 53 mil pessoas ansiosas para ver a primeira exibição do time principal depois da disputa do Mundial de Clubes. O atacante não se acanhou e fez um belo gol, o de honra na derrota do Resende por 3 a 1: arrancou de antes da intermediária, deixou o zagueiro Thuler para trás e bateu cruzado, sem chances para Diego Alves.
– Quando você entra dentro no Maracanã, onde tem 53 mil pessoas, você olha assim, né… E você faz o gol contra o Flamengo, abrindo o placar, eu acho que qualquer pessoa ia se sentir tão feliz como eu me senti naquele momento. Só eu sei o quanto eu estava feliz naquele momento.
Além da derrota, Alef ficou frustrado por não conseguir trocar de camisa com o autor de um dos gols do adversário, o atacante Bruno Henrique. Algum companheiro de time chegou antes dele. Em vez disso, ficou com a número 8 de Gerson, guardada com carinho quase como se fosse um troféu na casa da mãe.
Não faz mal. Daqui a duas semanas, Volta Redonda e Flamengo vão se enfrentar pelo Carioca, possivelmente uma briga pelo primeiro lugar da Taça Guanabara, e ele vai ter uma nova chance: “Gosto muito do futebol dele (Bruno Henrique). Espero que esse ano eu possa pegar essa camisa, que eu vou guardar pra sempre”.
O jogo marcado para o próximo dia 25, já movimenta o Morro da Nova Cintra, em Santos. No momento, ambos os times têm 19 pontos, mas o Rubro-Negro leva vantagem no saldo de gols.
– Vamos ver o que vai dar. Tem gente que é flamenguista, mas, como o Alef é da comunidade, estão torcendo por ele. É um menino saído da comunidade, o povo dá essa força – conta a mãe.
A vida de Dona Marcela também mudou diante da ascensão do filho. Ela trabalha como gari na cidade de Santos e dia desses levou um susto. Enquanto varria a calçada, percebeu um homem, em uma moto, se aproximar lentamente. Ficou apreensiva à medida que ele chegou mais perto.
“Pensei: ‘ai, Jesus!’. Joguei a vassoura no chão e achei que seria sequestrada. Ele perguntou se eu era mãe do Alef Manga. Respondi: ‘Sou sim’, queria ter falado não. Aí o moço: ‘Parabéns, senhora. Eu vi o jogo ontem. Que vitória'”, contou Dona Marcela.
A sensação foi de alívio e orgulho. A verdade é que passa um filme na cabeça dela, que relembra o início, os quilômetros de bicicleta, o Alef de carona, a caminho do treino, a fuga pelos becos para pedir uma vaga ao presidente do Santos. Hoje, tudo parece fazer mais sentido.
– Até no trabalho, os coletores pendurados no caminhão com a mão para cima falam para mim: “Vai dar tudo certo, tia. Só ter paciência”. Não tenho palavra, é só orgulho.
Por Ronald Lincoln Jr e Tébaro Schmidt – Rio de Janeiro