Esporte
A Fórmula 1 e as mudanças de regulamento. De tempos em tempos, a categoria convive com revoluções.
F1: quando as mudanças de regras acabam com longas hegemonias
Na maior mudança de regulamento dos últimos 40 anos, Mercedes se vê em dificuldades após oito anos de domínio, enquanto a Ferrari volta ao protagonismo tentando encerrar jejum de títulos
A Fórmula 1 e as mudanças de regulamento. De tempos em tempos, a categoria convive com revoluções. Algumas menores, outras maiores. Mas são momentos capazes de mudar a ordem de forças da maior categoria do automobilismo mundial. Está longe de ser algo incomum, diga-se de passagem. É o que estamos vendo na pista em 2022. A equipe dona da maior hegemonia da história sofrendo com muitas dificuldades, ainda tentando se achar. E a mais tradicional delas, vivendo um jejum de 15 anos sem títulos de pilotos e 14 de construtores, de volta aos bons dias, lutando por vitórias e assumindo o papel de concorrente real ao título.
Nas últimas semanas recebi muitos questionamentos sobre essa mudança de forças na Fórmula 1 por causa das novas regras. E sim, gente. É normal. Aliás, as regras são costumeiramente alteradas também por causa disso, para tentar acabar com longos domínios. A Mercedes, aliás, estabeleceu uma hegemonia sem precedentes, a maior da história. De 2014 a 2021, foram oito conquistas de Mundiais de Construtores (100% de aproveitamento) e sete de pilotos (seis de Lewis Hamilton e um de Nico Rosberg). Uma supremacia que começou, justamente, em uma radical mudança de regras. Vou relembrar as mais recentes neste texto.
– 2014: o início da era híbrida
O lançamento do Mercedes W05, carro que dominou a temporada 2014 da Fórmula 1 — Foto: Andrew Hone/Getty Images
A Fórmula 1 resolveu mudar o regulamento de motores para a temporada 2014. A ideia era ampliar o sistema híbrido, que já contava com o Sistema de Recuperação de Energia Cinética (Kers) desde 2009, e tornar a categoria mais atrativa para as montadoras mundiais. A ideia era ser um campo de provas para novas tecnologias para os carros de rua. Por isso, os V8 aspirados de 2,4 litros foram abandonados para dar lugar a complexas – e caras – unidades de potência com motores a combustão V6 turbo de 1,6 litro, com dois sistemas de recuperação de energia: o MGU-K (antigo Kers) e o MGU-H, que é alimentado pelos gases do escapamento.
O Mercedes-Benz PU106A Hybrid, motor que dominou a Fórmula 1 na temporada 2014 — Foto: Mercedes-AMG
A Mercedes, que tinha comprado a Brawn GP no fim de 2009 e voltou a ter uma equipe na Fórmula 1, passou quatro anos como figurante. E viu nos motores híbridos a grande chance de ser protagonista na categoria. Investiu tempo e dinheiro para construir o PU106A Hybrid. E deu certo: venceu 16 das 19 corridas da temporada 2014, com 11 de Lewis Hamilton e cinco de Nico Rosberg. A equipe alemã marcou absurdos 701 pontos para ser enfim campeã do Mundial de Construtores, com 11 dobradinhas, e teve seus dois pilotos lutando pelo título até a última corrida do ano, em Abu Dhabi, que terminou com o bicampeonato de Lewis Hamilton.
Mais do que isso: o início da hegemonia da Mercedes encerrou o período de domínio da Red Bull. A equipe austríaca tinha dominado as quatro temporadas anteriores, em um casamento muito bem sucedido do talento do alemão Sebastian Vettel, que se sagrou tetracampeão, com os carros projetados pelo inglês Adrian Newey, o mago da aerodinâmica. Na transição para a era híbrida, o time sofreu por não ser uma equipe de fábrica – e ainda deu o azar de a Renault, sua fornecedora de motores, ter feito um híbrido cheio de problemas, principalmente de confiabilidade. A Red Bull só voltaria a vencer um Mundial de Pilotos em 2021, com Max Verstappen, mas ainda vive um jejum de nove anos entre os construtores.
Lewis Hamilton cruza a linha de chegada para vencer em Abu Dhabi, em 2014 — Foto: Getty Images
– 2009: o infame difusor duplo
O infame difusor duplo, pulo do gato da Brawn GP para vencer os mundiais em 2009 — Foto: Darren Heath/Getty Images
Parecia um conto de fadas. Uma equipe que estava fadada ao encerramento após a saída da Honda da Fórmula 1, comprada pelo seu chefe por apenas £ 1, no chamado management buyout. De repente, já nos primeiros testes do novo carro, resultados consistentes, com tempos até dois segundos mais rápidos que os das rivais. Parecia um daqueles brilharecos de times pequenos para arrebanhar patrocinadores para fechar a conta do ano. E não era: no dia 29 de março daquele ano, no GP da Austrália, a Brawn GP assombrava o mundo da F1: uma dobradinha na primeira corrida do time, com o futuro campeão Jenson Button em primeiro e o brasileiro Rubens Barrichello em segundo.
A última vitória de Jenson Button em 2009 foi no GP da Turquia, sétima corrida da temporada — Foto: Paul Gilham/Getty Images
O que permitiu isso? A mudança do regulamento para a temporada de 2009, radical em termos de aerodinâmica. A ideia, para variar, era tentar reduzir a turbulência gerada pelos carros para aumentar as ultrapassagens e gerar menos pressão aerodinâmica (downforce). Para isso, a asa traseira foi diminuída, a asa dianteira foi aumentada (e abaixada) e foram proibidas as aletas ao longo da carenagem. Mas, para variar, as regras tinham brechas. E foi aí que Ross Brawn, ex-chefe da Honda e dono da equipe que levava seu sobrenome, entrou. Ele havia participado do grupo de trabalho que as elaborou. Ou seja, conhecia a brecha. E a atacou perfeitamente no projeto do carro.
O BGP001 era um carro de linhas clássicas, com um bico baixo, ao contrário dos outros carros daquele ano. Não tinha o Kers, outra novidade do regulamento de 2009, por questões de orçamento. E contava com o bom motor Mercedes, que teve de ser adaptado ao projeto original, que previa o Honda. E a brecha deu origem ao infame difusor duplo, que aumentava a velocidade com que o ar passa por baixo do carro e conferia mais downforce ao modelo. Brawn adicionou um segundo andar ao elemento e com uma espécie de asa. O efeito foi devastador.
Rubens Barrichello cruza a linha de chegada para vencer o GP da Itália em Monza, em 2009 — Foto: Getty Images
A Brawn GP dominou as sete primeiras corridas do ano (exceção feita ao frio e chuvoso GP da China, que teve vitória de Sebastian Vettel, com a Red Bull). Jenson Button venceu suas seis provas neste período enquanto as outras equipes tentavam reagir. O inglês criou a gordura necessária para apenas administrar o restante do campeonato e conquistar seu único título. A equipe inglesa só venceria mais duas corridas nos 10 GPs restantes, ambas com Rubens Barrichello. Foi o suficiente para levar também o Mundial de Construtores. O time encerrou sua trajetória na Fórmula 1 com 100% de aproveitamento e teve 75,1% das ações vendidas para a Mercedes por US$ 175,7 milhões (na época, R$ 305 milhões).
Jenson Button e a Brawn GP comemoram os títulos conquistados em 2009 — Foto: Darren Heath/Getty Images
– 2005: corridas sem trocas de pneus
Giancarlo Fisichella e Fernando Alonso no lançamento do Renault R25, carro campeão em 2005 — Foto: Alexander Hassenstein/Bongarts/Getty Images
Diante das mudanças que vimos em 2009 e 2014, proibir a troca de pneus durante as corridas parece ser uma medida pequena. Mas não foi. Vale lembrar que em 2005, a Fórmula 1 vivia o auge da guerra de pneus, com uma disputa ferrenha entre Michelin e Bridgestone. As novas regras favoreceram a fabricante francesa, que tinha sete das dez equipes sob contrato na ocasião. Vale lembrar que a marca japonesa, sua rival, ficou com apenas três times também como consequência do favorecimento à Ferrari nos anos anteriores. Só a equipe italiana e as duas piores equipes, Jordan e Minardi, usaram Bridgestone em 2005.
O infame GP dos Estados Unidos de 2005, com os carros de Michelin recolhendo antes da largada — Foto: Vladimir Rys/Bongarts/Getty Images
A mudança de regulamento encerrou a hegemonia da Ferrari da era Schumacher, que havia ganhado cinco títulos de pilotos – todos com o alemão – cinco de construtores entre 2000 e 2004. A equipe italiana não conseguiu mudar a filosofia de uso dos pneus no carro de 2005, e ainda contou com compostos menos eficientes da Bridgestone em relação ao Michelin. Com Michael Schumacher, a Ferrari venceria apenas uma corrida naquela temporada, justamente o infame GP dos Estados Unidos, a corrida de seis carros em Indianápolis, onde os carros com Michelin abandonaram antes mesmo da largada após enorme polêmica causada por problemas de resistência nos pneus na curva inclinada do oval.
Fernando Alonso e Kimi Raikkonen duelaram durante toda a temporada de 2005 da Fórmula 1 — Foto: Lars Baron/Bongarts/Getty Images
A temporada acabou sendo palco de uma disputa acirrada entre a Renault, que virou protagonista com a mudança de regulamento, e a McLaren. Ambas usavam pneus Michelin. Fernando Alonso e Kimi Raikkonen travaram um belo duelo, que terminou com o primeiro título do espanhol na Fórmula 1 após um terceiro lugar no GP do Brasil, em Interlagos, três corridas antes do fim do campeonato.
Fernando Alonso comemorando o título de 2005, obtido no GP do Brasil, em Interlagos — Foto: Clive Rose/Getty Images
– As mudanças para 2022
Max Verstappen ultrapassa Charles Leclerc na nona volta do GP de Miami de Fórmula 1 — Foto: Mark Thompson/Getty Images
A temporada 2022 está sendo palco da maior mudança de regulamento desde 1982, justamente quando o efeito solo foi abolido da Fórmula 1. Com o retorno da tecnologia, a filosofia de construção dos carros mudou completamente. O downforce, antes majoritariamente gerado pelas asas do carro, passou a ser responsabilidade do assoalho. Tudo, como sempre, para tentar melhorar o show das corridas, permitir que os carros andem colado sem sofrer com a famosa turbulência. Mas ainda é cedo para saber se as mudanças neste sentido foram realmente eficientes.
A volta do efeito solo trouxe de volta um velho problema: o Efeito Golfinho (porpoising, no termo em inglês, leia mais sobre ele aqui), que não pode ser detectado nas simulações no computador (no CFD) e tampouco no túnel de vento. Todas as equipes estão sofrendo com ele, umas mais, outras menos. E mais uma mudança de regulamento acabou com um domínio na Fórmula 1: foi a Mercedes quem mais perdeu desempenho com as novas regras. De dominadora nas últimas oito temporadas, a equipe alemã passou a lutar a duras penas para se manter como a terceira força do campeonato, principalmente nas classificações.
Lewis Hamilton trava as rodas antes de contornar a Variante Alta no circuito de Imola — Foto: Dan Mullan/Getty Images
Por consequência, vimos a Red Bull permanecer no topo, graças principalmente ao trabalho de Adrian Newey, que ainda é o melhor entre os engenheiros da Fórmula 1, e à experiência dele com o efeito solo lá no início dos anos 1980, quando inclusive foi estagiário da Copersucar-Fittipaldi. E estamos assistindo ao retorno da Ferrari ao protagonismo, com um carro muito bem projetado e um motor que ganhou muito nos últimos dois anos. E neste fim de semana, em Barcelona, pista preferida para os testes e da qual todas as equipes têm uma abundância de dados coletados, veremos a real ordem de forças da Fórmula 1 na temporada 2022. Será o GP da Espanha mais decisivo dos últimos anos.
Reta dos boxes do Circuit de Barcelona-Catalunya, sede do GP da Espanha — Foto: Dan Istitene/F1 via Getty Images
Perfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.com
Voando Baixo — Rio de Janeiro
Por Rafael Lopes
Ge.globo.com