SIGA O 24H

Esporte

Até 2030, é possível de acontecer de tudo para impulsionar os interesses geopolíticos da Arábia Saudita.

Publicado

em

Compartilhar isso...

Como a Arábia Saudita está comprando o futebol para tentar dominar o mundo – e a Copa 2030

Reino teocrático anunciou estatização dos principais clubes do país para seduzir craques globais; estratégia se relaciona com patrocínios milionários, entrada no futebol europeu e (muita) influência política

O Reino da Arábia Saudita anunciou nesta segunda-feira, por meio do seu Ministério dos Esportes, a aquisição de quatro dos cinco maiores campeões nacionais de futebol profissional do país. Trata-se do “Projeto de Investimento e Privatização de Clubes Esportivos”.

Al-Hilal e Al-Nassr, clubes da capital Riad; e Al-Ittihad e Al-Ahli, da portuária e estratégica cidade de Jeddah, na costa do Mar Vermelho, somam 39 títulos nas 48 edições do campeonato saudita, hoje chamado de Saudi Pro League.

Imagem de Benzema com camisa do Al-Ittihad agita jogo da equipe saudita — Foto: Reprodução

Imagem de Benzema com camisa do Al-Ittihad agita jogo da equipe saudita — Foto: Reprodução

Em cada um desses casos, o projeto prevê que as associações originais serão convertidas em fundações e seus ativos serão transferidos para uma nova empresa. O Public Investment Fund (PIF), o fundo soberano saudita, será dono de 75% do capital dessas quatro novas empresas, assumirá o controle e designará maior parte da diretoria.

De certa forma, trata-se de um avanço em relação ao modelo de mecenato dominante até então. Como levantou recentemente Rodrigo Capelo, em sua coluna em O Globo, maior parte das receitas dos clubes sauditas é oriunda do subsídio direto do estado e por injeções financeiras feitas pelos seus dirigentes e outros empresários locais, esses quase sempre ligados ao regime central. Os próprios patrocínios são realizados por empresas subsidiárias do PIF, nos mais diversos segmentos.

Portanto, a ideia de “privatização” sugerida no título do programa lançado pelo governo não passa de uma figura de linguagem. Clubes sociais são de “direito privado” por natureza, mas no caso saudita, especialmente, eles já eram controlados e financiados pelas mesmas figuras há décadas.

Caso se queira trabalhar com termos mais precisos, o projeto anunciado pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, é na realidade um projeto de estatização dos clubes sauditas, agora em definitivo e de forma institucionalizada, porque o fundo soberano será o proprietário de fato dessas novas empresas.

De acordo com os jornalistas Tariq Panja e Ahmed Al Omran, do New York Times, a intenção do projeto é viabilizar até 1 bilhão de dólares para contratar e remunerar ao menos 20 jogadores de primeiro escalão – e nesse caso, não apenas “medalhões” em fim de carreira.

Uma trajetória que já se iniciou, com um contrato multimilionário com a lenda portuguesa Cristiano Ronaldo, pelo Al-Nassr, e agora avança com o iminente anúncio atual dono do prêmio Ballon D’or, o francês Karim Benzema, pelo Al-Ittihad. Há muitos outros craques numa lista de alvos, dentre eles Lionel Messi, que já recebeu proposta do Al-Ahli. O argentino, por sinal, já é “embaixador do turismo” na Arábia Saudita desde maio de 2022.

A empresarização-para-estatização dos ditos “quatro grandes” da liga causou imediato desconforto nos demais membros do futebol saudita. Um deles foi Khalid al-Baltan, presidente do Al-Shabab, clube da cidade de Riad que, apesar de ser o quarto maior campeão nacional, com 6 títulos, acabou sendo preterido no projeto do PIF.

“A distância está ficando muito grande, a situação financeira não nos permite competir com outros clubes”, afirmou al-Batan em uma coletiva recente. “Meu carro é um sedan japonês pequeno, e de alguma forma se espera que eu corra contra lamborghinis e ferraris. Se eu não vencer, a culpa é minha? Não faz sentido”, argumentou.

A diplomacia do dinheiro

Ao observador menos atento, o projeto poderia indicar uma inversão dos polos do futebol atual, provocando um êxodo de talentos dos clubes europeus para a Arábia Saudita. Não parece ser para tanto, mas sem dúvida gerará alguns deslocamentos pouco usuais no mercado.

Já o observador um pouco mais atento poderá relacionar a empreitada saudita a outras iniciativas semelhantes, como a Superliga Chinesa (especialmente a partir 2011, com suporte estatal) e a Superliga Indiana (criada do nada em 2014), casos que prometeram muito e entregaram bem pouco. Apesar de envolverem grandes quantias, os salários nem sempre convenciam craques a deixar a Europa, receosos de uma evidente perda de visibilidade.

Ainda que se mostrem igualmente efêmeros no futuro, os esforços do regime saudita para fortalecer a liga local devem ser entendidos como parte de um maquinário muito mais amplo de expansão da influência do país no contexto global. Um reposicionamento político que não se resume ao esporte, mas que compreende seu potencial para viabilizar os objetivos finais.

Publicamente, a Arábia Saudita conduz sua política externa de acordo com um programa estratégio conhecido como “Saudi Vision 2030”. Para além de objetivar diversificar a economia do país, reduzindo sua dependência da exportação de petróleo, o programa ambiciona colocar o país mais rico do mundo árabe como um líder da região, tornando-a um dos principais centros políticos e financeiros do planeta.

O tipo de movimento que fez o mundo se habituar a pronunciar os termos “soft power” e “sportwashing”. Esses dois conceitos referem-se respectivamente às técnicas de imposição de poder por vias não-bélicas, dentre as quais estaria o investimento e suporte a eventos esportivos; e ao uso do esporte para “limpar a imagem” de um regime, país ou grupo econômico, dada a popularidade que expressões culturais modernas possuem, especialmente no ocidente.

É certo que esses conceitos são controversos quanto às suas aplicabilidades – ainda muito debatidos por estudiosos de áreas como história e sociologia –, mas são pontos de partida interessantes para observar as razões da entrada agressiva de poderosos grupos de investimento relacionados a regimes autoritários do Golfo Pérsico – Catar, Abu Dhabi e a própria Arábia Saudita.

Esse método político não se resume a esses três casos, sendo observados em muitas outras localidades, escalas e modelos, mas é difícil não perceber a diferença da proporção do investimento, da facilidade em que atingem seus objetivos e da flagrante conivência dos agentes políticos ocidentais quanto aos problemas relacionados, especialmente, aos direitos humanos nesses países.

É obra da Arábia Saudita o chamado LIV Golf, criado em 2021, um novo torneio de golfe que paga aos atletas prêmios mais altos que os tradicionais PGA Tour e DP World Tour. A empresa Aramco, braço petrolífero do PIF, é uma das patrocinadoras da Fórmula 1 e foi parte crucial para fazer de Jeddah um dos circuitos da categoria, no final de 2021.

Também foi em Jeddah que aconteceu a Supercopa da Espanha de 2020. Em 2022 e 2023, o evento aconteceu em Riad, para onde voltarão os clubes em 2024. Esse taça, tradicionalmente disputada entre os campeões da Copa del Rey e de La Liga, desde então tem contado com quatro participantes – basicamente para evitar a ausência de Barcelona ou Real Madrid.

Torcedores com camisas de Real Madrid e Barcelona na final da Supercopa da Espanha na Arábia Saudita — Foto: EFE/ Juan Carlos Cárdenas

Torcedores com camisas de Real Madrid e Barcelona na final da Supercopa da Espanha na Arábia Saudita — Foto: EFE/ Juan Carlos Cárdenas

De 2018 para cá, a Supercopa da Itália também já foi realizada três vezes entre Jeddah e Riad. As edições de 2024 e 2025 serão na mesma Arábia Saudita, agora copiando o formato de quatro clubes.

As ambições vão mais além. De acordo com reportagem de Ed Aarons and Romain Molina, do jornal britânico The Guardian, a Arábia Saudita estaria próxima de fechar um acordo de 200 milhões de dólares para patrocinar uma “Super League” da Confederação Africana de Futebol (CAF). Uma nova taça continental para além da tradicional African Champions League.

Essa competição, idealizada por Patrice Motsepe, atual presidente da CAF e ex-dono do sulafricano Mamelodi Sundowns FC, conta com grande apoio da FIFA e deverá render prêmios quase quatro vezes maiores que a Champions. Ao que consta, o apoio está profundamente relacionado às ambições da Arábia Saudita em ser eleita sede da Copa do Mundo de 2030: ao financiar um projeto da confederação que possui 54 votos na assembleia da FIFA, o país passaria a ser forte concorrente da eleição prevista para ocorrer em 2024.

Newcastle United pode virar multi-club ownership

A Arábia Saudita entrou um pouco atrasada no futebol, se compararmos as jogadas de Bin Salman aos movimentos feitos pelos vizinhos Catar e Abu Dhabi (um dos sete Emirados Árabes Unidos). O Catar adquiriu o Paris Saint-Germain em 2011, através da Qatar Sports Investments (QSI), uma subsidiária da Qatar Investment Authority, fundo soberado catari. Hoje, o grupo também é acionista do Braga, de Portugal (21,6%) e nas últimas semanas vem abrindo diálogos para investir no Santos.

Ainda antes do caso QSI, o emirado de Abu Dhabi adquiriu o Manchester City através do Abu Dhabi United Group (ADUG). Hoje o clube pertence ao City Football Group, a “figura jurídica” atual da ampla rede de clubes sob controle do emirado, da qual faz parte a SAF do Bahia – uma empresa subsidiária do ADUG. Apesar do ADUG ser oficialmente uma empresa privada, o grupo pertence a membros da família real emiradense – e que no fim das contas é parte do maquinário geopolítico local.

Observe que, diferente do que faz o Catar, os sheiks de Abu Dhabi não utilizam o fundo soberano (o Abu Dhabi Investment Authority) para adquirir clubes de futebol. A aquisição do City pelo grupo foi alvo de muito questionamento no Reino Unido, especialmente pela experiência do Chelsea, à época super-campeão com investimentos do controverso oligarca russo Roman Abramovich.

Esse tipo de escrutínio público da imprensa, da classe política e da sociedade civil em geral ajuda a explicar a complexa trama que envolveu a aquisição do Newcastle United, iniciada em abril de 2020 e só conclusa em outubro de 2021. Publicamente, a cabeça do consórcio que controla o Newcastle United é a empresária Amanda Staveley, presidente-executiva da PCP Capital Partners, uma das empresas que compõe o consórcio do qual também fazem parte do fundo de investimentos britânico RB Sports & Media e o PIF da Arábia Saudita.

Após mais de 18 meses de controvérsia, a liga inglesa finalmente autorizou o acordo com um curisoso anúncio: “A Premier League agora recebeu legalmente garantias vinculativas de que o Reino da Arábia Saudita não controlará o Newcastle United Football Club”, dizia a nota. A entidade se baseou no fato de que o conselho do clube seria divido igualmente entre os três grupos investidores.

Como o grande tema do momento no futebol global é a moda do “multi-club ownership” (MCO), é de se esperar que, a partir do Newcastle United, as pretensões sauditas também passem pela criação de uma rede internacional de clubes.

Matt Slater, do site The Athletic, em reportagem de março deste ano sobre o Financial Times’ Business of Football Summit, um dos maiores eventos de negócios de futebol do mundo, trouxe a informação de que o novo super-rico da Inglaterra já estuda a ideia. “Nós estamos inclusive estudando uma outra estrutura”, afirmou Amanda Steveley, desde então o rosto público do Newcastle. “Talvez algo um pouco diferente que nos dê oportunidades de trabalhar com um número ainda maior de clubes”, indicando que a trabalhosa tarefa de adquirir clube por clube não interessa tanto, porque tende a ser mais demorada e burocrática.

A saída poderia então passar pelo investimento em um grupo já existente, ou mesmo a aquisição completa e acelerada de um MCO por completo – como 777 Partners, Eagle Holding ou qualquer outras mais de 15 redes atualmente existentes que já possuem mais de quatro clubes. Talvez mais de uma.

Até 2030, é possível de acontecer de tudo para impulsionar os interesses geopolíticos da Arábia Saudita. E não faltam interessados em lucrar com isso – a despeito dos seus efeitos de longo prazo.

Por Irlan Simões, Especial para o ge

COMENTÁRIOS

Deixe seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade