Esporte
Com ginga e resistência, negros driblam preconceito no futebol
Drible Negro: como elementos da cultura afro-brasileira foram inseridos no futebol contra o racismo
Pesquisadores destacam componentes do samba e da capoeira, como a ginga no estilo brasileiro de driblar
O atacante Vinícius Jr. vive possivelmente sua melhor temporada pelo Real Madrid. Surge como um dos artilheiros e garçons da equipe, mas o que salta aos olhos são os dribles plásticos e contundentes que aplica. Segundo o site Footstats, ele é o maior driblador das edições atuais do Campeonato Espanhol e da Champions League. Rápido e insinuante, está difícil de parar o garoto, de 21 anos, que busca um lugar na linhagem de brasileiros negros que se destacaram ao redor do mundo por causa da habilidade. Entre eles estão Ronaldinho, Neymar, Dener, Garrincha, Pelé e muitos outros.
Para alguns pesquisadores essa relação entre técnica e raça pode não ser mera coincidência. Eles apontam que elementos da cultura negra foram inseridos no futebol para incrementar o drible. Mas não só por isso. Também foram uma forma de os negros escaparem da discriminação.
Ludmila e Vinícius Jr — Foto: Infografia ge
A teoria se debruça sobre as primeiras décadas do século passado, quando o futebol era terreno proibido para pessoas negras. Clubes e competições aceitavam apenas brancos. Com o passar dos anos, os jogadores negros foram conquistando o direito de jogar. Entretanto, o racismo continuou se manifestando de outra forma: por meio da violência.
Uma pesquisa publicada em 1995 pelo sociólogo Maurício Murad, e que consta no livro “Violência no futebol”, um dos clássicos sobre o tema, traz relatos de jogadores e jornalistas que vivenciaram o período de inserção do negro no futebol. Entre os registros, está uma entrevista de Domingos da Guia, zagueiro da Seleção Brasileira na Copa de 1938, sobre as dificuldades que os negros enfrentavam quando ele nem sonhava em ser jogador.
“Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes[…] Meu irmão mais velho me dizia: ‘Malandro é o gato que sempre cai de pé. Tu não é bom de baile?’ Eu era bom de baile mesmo,e isso me ajudou em campo. Eu gingava muito […]O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba”
Jordan Garrincha — Foto: Reprodução / Manchete Esportiva
Murad reforça que sua hipótese não visa a dizer que o drible no futebol foi inventado pelos negros, mas destaca as peculiaridades da maneira brasileira de ludibriar os adversários.
– Embora não podemos dizer que o drible tenha sido somente uma invenção negra porque no futebol inglês tinha o ‘dribble”. Mas a diferença é que lá o ‘dribble’ era passar a bola. No futebol brasileiro, não era só passar a bola, era passar com a bola. Sem tocar no corpo dele. Então a ginga, a finta, o passe da capoeira, de dança, o linguajar corporal acabaram ajudando o negro a montar o drible – afirma.
ronaldinho gaucho brasil x australia copa do mundo 2006 — Foto: Getty Images
O professor e filósofo Renato Noguera, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) explica que os africanos, quando retirados de seus países para serem escravizados em outros continentes, buscaram formas de resistir e manterem suas raízes. Ao acessarem o futebol, poucas décadas após a abolição da escravidão no Brasil, acrescentaram ao esporte um elemento presente em muitas culturas africanas: a corporalidade.
– É uma cultura em que o corpo está o tempo todo presente. A cultura negra é uma corporalidade, a corporalidade é a compreensão de que a as nossas relações se dão através do corpo, que o corpo tem uma história, uma tradição, um histórico. Isso está presente em uma corporalidade negra no futebol brasileiro especialmente naquilo que é o drible.
‘Samba Style’ e Capoeira
Recentemente, o Real Madrid utilizou o termo “samba style” em suas redes sociais para definir o estilo de Vinícius Jr. de tratar a bola. O atual técnico do time, Ancelotti, apontou o jogador um dos melhores do mundo no “um contra um”. Também pudera, o atacante, cria de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, é um dos protagonistas da temporada, com uma cartela impressionante de dribles. A ginga na hora de uma pedalada está ali, a malandragem ao surpreender com uma lambreta, também. Mas sua influência não vem apenas do samba.
– Sei sambar um pouco, sei dançar funk um pouco e acaba ajudando nos movimentos, acabo passando um pouco a alegria para os dribles no campo. Desde pequeno sempre gostei muito de funk, sempre fui um bom dançarino (dá uma gargalhada). E nos jogos que faço gol me sinto mais leve quando posso comemorar do jeito que eu quero – contou Vinícius Jr ao ge.
Ludmila é artilheira isolada do Campeonato Espanhol Feminino, com nove gols — Foto: Divulgação/Atlético de Madrid
Poucos sabem, mas antes de se tornar jogadora de futebol profissional, a atacante Ludmila, do Atlético de Madri e da Seleção Brasileira, era exímia capoeirista. A bola veio depois. Ainda assim, a jogadora, nascida em Guarulhos, na Grande São Paulo, não deixa as raízes para trás. Antes de todas as partidas, ela coloca os fones no ouvido, se desliga de tudo e encontra no som o combustível para entrar em campo.
– Muitas vezes quando eu vou pro jogo, tenho que escutar um pouco o barulho do berimbau. A capoeira mexe muito com o corpo e a força são o ponto mais forte que eu tenho – diz Ludmila.
Décadas se passaram e o campo de futebol se tornou um lugar mais seguro. Sambando miudinho ou jogando capoeira, os jogadores negros fizeram dos gramados um palco para brilhares. Assim, colocaram o futebol brasileiro no imaginário artístico do esporte mundial, e continuarão a fazê-lo no futuro.
Por Diego Moraes e Ronald Lincoln Jr. — Rio de Janeiro
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