Esporte
“Foi aqui que eu tive as maiores conquistas”. Abel Braga
Abel Braga volta a sorrir
Desacreditado (pelos outros) na chegada ao Inter, ídolo colorado renasce em casa no Beira-Rio e se despede sem título, mas como o melhor técnico do Brasileirão 2020
Aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, manhã de 10 de novembro de 2020. O Inter mal havia oficializado a saída abrupta de Eduardo Coudet e, pouco mais de 12 horas depois, lá estava Abel Braga na fila de embarque de um voo direto para Porto Alegre.
O anúncio oficial só viria mais tarde. Mas os olhares e votos de “boa sorte” de alguns colorados mais atentos foram imediatos. Tão instantâneos quanto o “sim” do treinador à convocação da diretoria colorada. Bastava emitir as passagens para o ídolo assumir o clube pela sétima vez.
À beira do portão de embarque, Abel tinha uma prova viva do que ele já sabia ser uma certeza: voltar ao Beira-Rio era o mesmo que voltar para casa. Foi ali, longe do abraço dos torcedores, mas perto de muitos dos amigos que fez em 50 anos no futebol, que ele deixou para trás trabalhos ruins anteriores para virar o melhor técnico do Brasileirão 2020.
“Foi aqui que eu tive as maiores conquistas. Tudo o que eu dei para o clube, eu recebi muito mais em carinho, em amizade. A gente consegue seguir em frente na vida quando se tem amigos. E o maior número de amigos que eu tenho, por incrível que pareça, não estão no Rio de Janeiro. Estão aqui” (Abel Braga, em entrevista à TV Inter)
Mesmo à distância, imposta por tempos pandêmicos, os muitos amigos tão queridos notaram a diferença a cada gol marcado pelo Inter na campanha que encerrou com vice colorado no Brasileirão. À beira do campo, Abel voltou a sorrir depois de tudo e de tanto, depois do golpe mais duro que a vida lhe impôs.
O ge ouviu de pessoas do círculo de amizades do treinador um consenso sobre os últimos 107 dias de futebol e Inter, dois aliados fiéis da vida toda. No Beira-Rio, Abel voltou a ser Abel, ou Abelão para os colorados. O técnico recordista em jogos pelo clube – são 340. O técnico recordista de vitórias consecutivas no Brasileirão – são nove. O melhor técnico do Campeonato Brasileiro 2020, em uma trajetória contada nas linhas a seguir.
EM BAIXA
Quando Eduardo Coudet pegou a todos e até a seus auxiliares de surpesa com a saída abrupta, Marcelo Medeiros recorreu à figura reconfortante de um ídolo para assumir uma equipe líder do Brasileirão, mas que parecia sem rumo. A relação quase umbilical entre Abel e Inter e o currículo do treinador pesaram muito. Bem mais do que seus trabalhos anteriores.
O técnico campeão da América e do mundo em 2006 chegou desacreditado (pelos outros, que se diga). O rótulo de “ultrapassado” veio junto com o treinador de 68 anos. E foi rasgado a pedacinhos por ele.
Antes de voltar ao Inter, Abel vinha de um tumultuado período como técnico do Flamengo e de trabalhos ruins por Cruzeiro e Vasco. Foram duas passagens tão breves quanto turbulentas.
Pelo Rubro-Negro, em 2019, o treinador até teve bons resultados no primeiro semestre, mas foi fritado internamente e viu a diretoria procurar Jorge Jesus com ele ainda no cargo. Se sentiu traído. Depois, ele abriu mão da premissa de não assumir equipes em meio à temporada, mas foi sugado por uma Raposa em crise. Durou apenas 14 jogos e dois meses no Cruzeiro.
Em dezembro de 2019, Abel abraçou um desafio no Vasco, mas também por pouco tempo. Com o clube em crise finaneira e algumas escolhas polêmicas – como usar times alternativos em clássicos – ele decidiu deixar o cargo.
A passagem pelo Inter, curiosamente, também foi curta. Durou apenas três meses, 22 jogos e 107 dias. Mas uma das respostas na entrevista coletiva de despedida dá o tom de que foi suficiente para uma nova fase da carreira.
– Hoje vocês falam que sou ultrapassado. Sou experiente. Vocês, da imprensa, têm condição de discutir com o Galvão? Impossível! É o maior ícone da imprensa brasileira – disse Abel, em referência ao vídeo acima.
“Sempre nas outras vezes, o Inter precisava dele. Dessa vez, eu pensei: ‘O Abel precisa do Inter’. O Inter estava em primeiro, o Abel em casa, alguns dizendo que estava ultrapassado. Nada melhor que um clube como o Inter, a casa dele, para que se possa oportunizar essa recuperação” (Pedro Paulo Zachia, primeiro presidente a contratar Abel para o Inter)
INÍCIO TURBULENTO E COVID-19
Enferrujado por quase oito meses recluso em casa, Abel ouviu de muitos de seus amigos uma pergunta sem amarras quando decidiu assumir o Inter na primeira colocação após a saída de Coudet: o que você vai fazer lá?
A resposta demorou a aparecer, sufocada por uma maratona de jogos decisivos a cada três dias e de tentativas frustradas. O treinador tentou manter a equipe de seu antecessor. Deu errado. Mexeu em peças. Deu errado. Mudou o esquema. Deu errado.
“Depois do que ele sofreu, esteve em um ambiente que não era propício no Flamengo. Logo a seguir, os trabalhos não deram certo. O retorno ao Beira-Rio, onde ele conhece. O lugar onde o Abel se sente melhor é o Inter. O vestiário é o ambiente que ele mais gosta. Fez com que ele se recuperasse” (Fernando Carvalho, ex-presidente do Inter)
O Inter foi eliminado para o América-MG na Copa do Brasil, patinava sem vencer no Brasileirão e tinha o Boca Juniors pela frente na Libertadores. Foi quando Abel contraiu Covid-19 e acabou forçado a duas semanas de isolamento. Dias difíceis para quem tinha a vontade de um menino de estar à beira do campo seja em treinos ou em jogos, contornados por telefonema e vídeos, sempre em linha direta com a comissão técnica.
O treinador voltou a comandar a equipe apenas contra o Boca Juniors no jogo da volta das oitavas de final da Libertadores. Logo no jogo que seria o da virada de chave para a temporada colorada. O Inter amargou mais uma eliminação nos pênaltis. Mas a vitória no tempo normal deixou como legado o encaixe da equipe no 4-1-4-1.
No dia seguinte, as manchetes nos jornais argentinos estampavam elogios a um Inter que impôs medo ao Boca Juniors em plena Bombonera. E a partir daí, esta reportagem recorre a um bordão já eterno de Abelão:
FOI LINDO, CARA!
O Inter de Abel Braga é o recordista de vitórias seguidas no Brasileirão por pontos corridos. Foram nove consecutivas, com direito a goleada por 5 a 1 para tomar a liderança do São Paulo em pleno Morumbi. Mas nenhuma delas parece ter provocado tanta alegria ao treinador quanto a euforia sentida por ele aos 44 minutos do segundo tempo do Gre-Nal de 24 de janeiro de 2021.
Até ai, o Colorado sentia o gosto amargo de mais uma derrota em clássicos. Mas Víctor Cuesta cruzou “com a mão” uma bola para a área e encontrou Abel Hernández livre no segundo poste para empatar.
Também livre, mas na área técnica, outro Abel, o Braga, cabeceou o ar e fez o gol junto com o atacante uruguaio. Depois, correu como um de seus atletas para festejar o empate. E sorriu ainda mais com o gol de pênalti de Edenílson para encerrar o jejum em Gre-Nais e selar a vitória por 2 a 1 no clássico.
Abel vira o técnico com mais jogos na história do Inter
Os colorados conhecem essa relação de pai e filho entre Abel e seus jogadores desde 1988. E ela marcou o tom de sua sétima passagem pelo clube. O ge ouviu de mais de um integrante da comissão técnica que a sua chegada distensionou – e muito – o ambiente.
E desde o primeiro dia. Em sua primeira conversa com o elenco, o treinador chamou por Nonato. O jovem se “acusou”, e ouviu do treinador a seguinte frase, em alusão ao gol marcado pelo meia no empate em 1 a 1 entre Cruzeiro e Inter em 2019:
– Tu me f**** em 2019 pelo Cruzeiro. Agora, eu quero ver se tu me ajuda.
Foi assim que Abelão cativou a todos de imediato. Mas o lado “paizão” veio sempre acompanhado de trabalho e até de uma faceta “moderna” do treinador.
“Sou um torcedor que, em 1988 e 89 olhava na arquibancada o Abel fazer uma campanha belíssima na Libertadores. Fui ao Paraguai de ônibus. Ele é uma figura fundamental na história do Inter. E estive com ele nesta quebra de recorde de vitórias pelo Inter. É para mim um momento ímpar” (Alessandro Barcellos, presidente do Inter)
Para ajeitar um time que parecia sem rumo, Abel se debruçava sobre vídeos e estatísticas preparados pelos analistas de desempenho do clube. A cada partida, um dossiê com imagens de seis a oito jogos dos adversários chegava a sua mesa para traçar a estratégia. Os líderes do elenco, como Edenílson e Rodrigo Dourado, sempre tiveram voz com o chefe.
O treinador que antes confundia nomes de jogadores nas entrevistas coletivas não demorou a conhecer o elenco e a encontrar as peças das quais precisava. Rodrigo Moledo voltou a ser titular na zaga. Rodrigo Dourado foi dos poucos minutos com Coudet à braçadeira de capitão. Praxedes ganhou a surpreendente titularidade no meio-campo e não saiu mais dali.
A experiência do técnico também caiu bem. Com Moisés, Abel teve uma conversa reservada para fazê-lo começar a treinar cobranças de faltas laterais. Três gols vieram de suas assistências. Caio Vidal, por sua vez, foi pinçado do time sub-20 à equipe titular pelo olhar clínico do treinador. Bastou ver um vídeo em uma conversa reservada com o presidente Marcelo Medeiros.
O Inter voltou a vencer no Brasileirão contra o Botafogo, e as vitórias se multiplicaram até a equipe perder o fôlego na reta final. Os cinco pontos somados nos últimos cinco jogos e as derrotas para Sport e Flamengo cobraram seu preço.
“O futebol, ele conseguiu preencher. Não superar, mas preencher esse vazio. Muita gente falou bobagem. Que bom que está mostrando o quanto é bom no que ele faz. O quanto merece estar passando por isso, enquanto tem coisas para mostrar. Acho que muita gente tem que aprender com o Abel. Pessoas precisam respeitar. (Roberto Melo, ex-vice de futebol do Inter)
LÁGRIMAS E RECONHECIMENTO
O último sorriso de Abelão pelo Inter veio aos 54 do segundo tempo do empate em 0 a 0 com o Corinthians. Víctor Cuesta avança com liberdade pela esquerda e tabela com Peglow. O treinador acompanha o lance com os olhos aflitos de quem precisa de um gol para ser campeão brasileiro.
O zagueiro cruza, e o gol vem dos pés de Edenílson. Abel salta, ergue os braços e grita aos ares. Mas o sorriso desaparece assim que a vista alcança a bandeirinha erguida pelo assistente Fabrício Vilarinho da Silva. Impedindo o gol, impedindo o tetra, provocando lágrimas.
E a última imagem de quem tanto fez sorrir no Beira-Rio é a de quem também se acostumou a chorar as lágrimas que são de todos os colorados. Os olhos vermelhos do treinador na entrevista coletiva de despedida – a sétima – do clube não deixam dúvidas.
“Não sei se pela televisão dá para ver a cor dos olhos. Foram só lágrimas depois da partida no vestiário. O trabalho foi muito bom e fico feliz de representar o Inter de uma forma, digna, real. De me doar (Abel)
Pouco menos de 24 horas após amargar o terceiro vice-campeonato brasileiro pelo Inter, Abel já estava de volta ao Rio de Janeiro. Trajava um terno cinza, com gravata prateada. E entrava na sede da CBF, na Barra da Tijuca, para receber o prêmio de melhor técnico do Brasileirão. Com o troféu em mãos, o sorriso estava lá novamente, por trás da máscara. Mas com o sentimento de que o Inter merecia mais.
Os 108 dias de Abel no Inter
O retorno
10/11/2020
Início difícil
9/12/2020
0 (5)1 (4)
A primeira vitória no Brasileirão
12/12/2020
21
Recital no Morumbi
20/1/2021
15
Emoção no Gre-Nal
24/1/2021
21
Recorde de vitórias
31/1/2021
21
Recorde de jogos
14/2/2021
02
A despedida
25/2/2021
00
Por Eduardo Deconto – Porto Alegre
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