Esporte
Há 21 jovens estrangeiros com vínculo profissional em 12 clubes da Série A do Brasileirão.
Mercado aquecido: saiba por que há cada vez mais estrangeiros na base dos times brasileiros
Supervalorização dos jovens brasileiros e sedutora vitrine ajudam a explicar a presença de gringos em processo de formação em mais da metade dos clubes da Série A
Assim que recebeu o dinheiro da venda de Talles Magno ao New York City FC, o Vasco aproveitou para comprar os direitos de dois jogadores que chegaram por empréstimo à base do clube: MT e Galarza. O segundo deles, um paraguaio de 19 anos, simboliza um movimento cada vez mais comum nas equipes brasileiras: a chegada de garotos estrangeiros para as categorias inferiores.
Galarza já marcou dois gols nesta temporada e é o caso em maior evidência, mas há diversos outros jovens que chegaram recentemente de fora para completar o processo de formação no Brasil. O Flamengo, por exemplo, tem na equipe sub-20 o paraguaio Fabrizio Peralta, acabou de contratar por empréstimo o colombiano Camilo Durán, de 19 anos, e há pouco tempo emprestou para um time do México outro colombiano, o volante Richard Ríos.
O Grêmio contribui para as estatísticas com quatro estrangeiros atuando nas categorias de base, todos eles com contrato profissional: o volante Mateo Velasco, o meia Wilmar Rivas, o atacante Kevin Quejada (os três da Colômbia) e o meia Mateo Barrios (Uruguai). Enquanto isso, a equipe sub-20 do Inter conta com o atacante Kevin Quiñones e com o meia Juan Manuel Cuesta, ambos colombianos – sem mencionar os que passaram por período de teste e não ficaram, casos do argentino Tomás Lujan e dos colombianos Aly Palacios e André Amaya.
O Palmeiras tem até um atacante do Panamá no seu time de juniores. Newton, que estreou no sub-20 marcando três gols numa partida contra o Presidente Médici na Copa do Brasil da categoria, já balançou a rede também na equipe principal, na derrota para o Mirassol por 2 a 1, no Paulistão deste ano. Ele tem contrato de empréstimo até março de 2022 e conta que não pensou duas vezes quando recebeu o convite do Verdão.
“Antes de chegar aqui, conversei com meu estafe e decidi que atuar no Brasil seria a melhor opção, é o melhor país para evoluir meu futebol”, diz Newton.
O ge apurou que há 21 jovens estrangeiros com vínculo profissional espalhados pelas categorias de base de 12 clubes da Série A do Brasileirão. Boa parte oriunda da Colômbia.
- Athletico – Gastón Kevin, zagueiro (Paraguai) e John Mercado, meia (Equador)
- Atlético-MG – Diego Acosta, atacante (Paraguai)
- Bahia – Williams Boum Kouame, volante (Camarões)
- Corinthians – Thomas argentino, volante (Argentina) e Juan David, meia (Colômbia)
- Cuiabá – Alan Mendez, atacante (Paraguai)
- Flamengo – Fabrizio Peralta, volante (Paraguai) e Camilo Durán, atacante (Colômbia)
- Grêmio – Mateo Velasco, volante (Colômbia), Wilmar Rivas, meia (Colômbia), Kevin Quejada, atacante (Colômbia) e Mateo Barrios, meia (Uruguai)
- Inter – Kevin Quiñones, atacante (Colômbia) e Juan Manuel Cuesta, meia (Colômbia)
- Juventude – Paul Henry, atacante (Camarões)
- Palmeiras – Leonardo Zabala, zagueiro (Bolívia), Marino Hinestroza, atacante (Colômbia) e Newton, atacante (Panamá)
- Santos – Matías Lacava, meia-atacante (Venezuela)
- São Paulo – Facundo Milán, atacante (Uruguai)
Fluminense, Bragantino, América-MG, Ceará, Fortaleza, Sport, Atlético-GO e Chapecoense são os oito clubes fora dessa relação, o que não significa que não tenham algum estrangeiro em processo de observação – as equipes nesse caso não costumam fazer alarde justamente para evitar o assédio, já que não existe vínculo que prenda o jogador se houver de concorrência.
O levantamento também não considera atletas com idade sub-20 que já estão no profissional, caso do colombiano Dylan Borrero, meia do Atlético-MG, nem aqueles que nasceram em outro país, mas que vivem desde pequenos no Brasil.
E, afinal, por que há cada vez mais estrangeiros na base dos clubes brasileiros?
É possível apontar ao menos três motivos principais: 1) A superinflação do mercado interno, com jogadores a partir dos 16 anos protegidos por valores de multas rescisórias nas alturas; 2) O poder de sedução do futebol brasileiro, que se tornou a principal vitrine no continente para os que desejam chegar à Europa; 3) O investimento cada vez mais robusto dos clubes em captação e formação de jovens talentos.
“NEGOCIAÇÕES MAIS SIMPLES”
A opção mais barata e rentável no universo de revelação de atletas de futebol continua sendo formá-lo dentro do clube, com passagens pelo maior número de categorias possível para absorção do DNA da equipe até, enfim, lançá-lo no profissional. Mas é um processo que leva anos, e há inúmeras variáveis que separam os primeiros passos no futebol na infância e a profissionalização. Mais de 98% desistem no meio do caminho.
É por isso que houve um crescimento recente nas contratações de “meia confecção”, ou seja, jogadores em reta final de formação que dão retorno técnico e financeiro a curto prazo. Dentro desse contexto, por incrível que pareça, muitas vezes é mais fácil buscar o atleta em outro país do que no Brasil, onde os preços ficam mais altos já a partir dos 16 anos (idade mínima prevista na Lei Pelé para assinatura de um contrato profissional).
– Um titular de seleção brasileira sub-17 é quase impossível de trazer hoje dentro do mercado brasileiro, a supervalorização desse atleta é muito grande – explica Júnior Chávare, gerente de futebol do Bahia com passagens pelas bases de Grêmio, São Paulo e Atlético-MG.
– Muitas das negociações são mais simples, tanto no aspecto comercial quanto financeiro, de serem realizadas fora do país do que aqui dentro. Os clubes do Brasil em sua maioria já têm hoje uma estrutura muito bem montada, são clubes que estão se formando para serem vendedores, e clubes vendedores já se colocam num patamar de referência financeira que inviabiliza trazer o jogador para que você possa observar com mais calma, com mais possibilidade – acrescenta.
Convocado para a Seleção sub-17 que está neste momento na Granja Comary em preparação para dois amistosos no Paraguai, Matheus Gonçalves, do Flamengo, tem multa rescisória fixada em 50 milhões de euros, cerca de R$ 307 milhões na cotação atual. É o mesmo valor que um clube terá que pagar caso queira tirar do Fluminense os atacantes Cauã Silva e Samuca, ambos com 17 anos, que assinaram este ano seu primeiro vínculo profissional.
A efeito de comparação, depois de cumprir um ano de empréstimo, a contratação em definitivo de Galarza custou 500 mil euros aos cofres do Vasco.
Os negócios normalmente seguem o mesmo modelo: o jogador é emprestado por período de um a dois anos, com uma ou mais datas previstas no contrato para a aquisição definitiva, de modo que o valor aumenta com o passar do tempo. Por sua vez, o clube formador preserva um percentual em vendas futuras. Para transferências internacionais, vale lembrar, a Fifa só permite que o atleta deixe o país depois de completar 18 anos.
Júnior Chávare faz apenas um alerta: é preciso se pautar na questão técnica no momento de trazer um jogador estrangeiro.
– A gente não traz só porque é de fora, trazer por trazer. Tem que ter qualidade, a questão técnica tem que ser primordial. Ele tem que vir num patamar que, dentro do nível de aposta, já que vai ser sempre uma aposta, é um nível que você fala: minha chance de sucesso é muito maior, é muito grande – explica o dirigente do Bahia.
PONTE PARA A EUROPA
Formado no Cerro Porteño e atualmente no Flamengo, Fabrizio Peralta, de 19 anos, contou ao ge os motivos que o fizeram aceitar a vinda para o Brasil.
– A maioria dos jogadores de futebol quer vir jogar no futebol brasileiro, já que aqui a qualidade é muito maior, tanto dentro de campo quanto com relação à estrutura de trabalho e formação. O ritmo do jogo aqui é sempre mais rápido, agressivo, uma ida e volta constantes, muito trabalho físico e intensidade acima de tudo – disse ele, acrescentando que chegar ao Flamengo “foi um sonho”.
Com as palavras de Peralta e Newton, fica fácil perceber que o Brasil se consolidou nos últimos anos como a principal ponte do continente para a Europa. Clubes como Corinthians, Palmeiras, Athletico, Fluminense, Bahia, Grêmio, Inter e companhia têm conseguido convencer times de países vizinhos de que é mais vantajoso um segundo passo do jogador na América do Sul antes da transferência para o futebol europeu.
Contratado este ano para o cargo de diretor-executivo da base do Inter, Gustavo Grossi ocupou essa mesma posição por cinco anos no River Plate e é considerado um especialista na captação e formação de talentos no continente sul-americano. Ele diz com todas as letras que o Brasil “é a plataforma mais importante da América”.
“Nenhum outro país tem tanta visibilidade, segmento, investimento como o Brasil. É muita diferença. Eu venho de uma equipe grande na Argentina, venho do River, e a diferença que tem em comparação com o River já é muito grande. Então você imagina outros países, como Colômbia, Venezuela, Paraguai, equipes menores da Argentina, Uruguai…”, afirma.
– É muita diferença que tem de organização, de quantidade de gente. São clubes de futebol. Os outros clubes têm muitas atividades, então o investimento se divide. Aqui o investimento vai para o futebol – completa.
Marcelo Segurado, ex-executivo de clubes como Goiás e Ceará, tem uma visão mais conservadora.
– Eu não sou contra buscar no exterior, principalmente no mercado latino-americano, esses jogadores com 18, 19 anos. Em função da legislação, não podemos ter jogadores mais novos. Mas desde que a gente tenha um olhar mais criterioso para nossa base, desde que os clubes tenham uma preocupação maior com a formação dos nossos atletas. Porque, ao mesmo tempo em que estamos falando em trazer atletas de 18, 19, 20 anos, praticamente formados, do mercado sul-americano, nós estamos perdendo atletas de 14, 15, 16, 17 anos com grande potencial para o mercado europeu – acredita Segurado, que é formado em geografia e sociologia.
– E por que estamos perdendo? Porque o futebol de uns 10 anos para cá mudou muito as características, e isso obrigou os jogadores a terem uma nova concepção de formação e de jogo. Hoje o mercado europeu continua querendo os jogadores com a técnica que têm aqui no Brasil, mas não querem jogadores formados da forma com o futebol brasileiro forma. Então eles estão vindo aqui e pegando nossos atletas de 12, 13 até 17 anos, e nós estamos trazendo os de 18, 19, 20 anos que são argentinos, chilenos, peruanos… Estamos criando um hiato na nossa formação – conclui.
É PRECISO INVESTIR
A chegada de Gustavo Grossi, que pelos tempos de chefe de scout na América do Sul diz ter abertura com praticamente todos os países do continente, foi um marco no processo de reestruturação do Internacional e expandiu, sim, os olhares do clube para jogadores de fora. Mas não só isso: Grossi tem como missão o aperfeiçoamento da base do Inter por inteiro, do sub-8 ao sub-20, de modo que o atleta chegue ao time principal com o DNA colorado nas veias.
– Não vou ser a pessoa que vai vir aqui ter minhas ideias, depois o clube troca de pessoa e trocam também as coisas. É o clube que está definindo, estudando qual vai ser a ideia para os próximos 10 anos de metodologia e também do individual, do DNA do atleta e do jogo. A primeira etapa é uma construção: tem que ter quadra de futebol, elementos, bons profissionais, treinadores, uma quantidade de atletas dentro de cada categoria que seja lógica, educação, saúde… Quando tudo estiver da melhor forma, vamos planejar o início do trabalho – explica o argentino, que tem contrato de três anos.
O Flamengo também tem investido nessa área, sobretudo na expansão dos seus tentáculos sobre o território brasileiro, com observadores em todas as regiões do país. Sob o comando do gerente de base Luiz Carlos, o próximo passo é se aproximar ainda mais de países vizinhos – leia o especial do ge sobre o projeto rubro-negro clicando AQUI.
Ao mesmo tempo em que trazer jovens jogadores de fora pode ser sinônimo de economia, é necessário que haja investimento em estrutura, tanto para captar esses talentos quanto para acolhê-los quando eles chegam ao Brasil, num trabalho que vai além da adaptação ao idioma.
– Por onde eu passei, o psicossocial foi o grande departamento da minha gestão. Tanto no Grêmio como no São Paulo, no Atlético-MG… Aqui no Bahia eu encontrei um departamento muito organizado e competente. O jogador gosta das coisas que valorizem a carreira dele, tem que ter essa linguagem direta. Então mais que o ensino clássico, hoje os clubes investem muito em palestras, em cursos rápidos, de administração financeira… tem tanta coisa para fazer. No Grêmio nós fizemos um curso de etiqueta e foi um sucesso (risos) – explica Júnior Chávare.
A opinião de Marcelo Segurado segue a mesma linha.
– Os clubes que buscam isso (jovens estrangeiros) têm que ter um departamento para acolher esse atleta, a família, a esposa. Porque às vezes ele sai para jogar, treinar, viajar, e a esposa fica sozinha. Recentemente, num clube em que eu havia acabado de chegar que havia trazido cinco, seis atletas sul-americanos, eu notei que eles estavam totalmente perdidos. Um a esposa tinha dado à luz, ficava sozinha, teve que voltar para o país de origem, estava no meio da pandemia, ele não falava a língua, às vezes não sabia nem pedir uma comida. Então você precisa ter assistência para que eles possam ter tranquilidade e desenvolver o futebol – finaliza o dirigente.
Por Ronald Lincoln Jr e Tébaro Schmidt – Rio de Janeiro
Ge.globo.com