Esporte
Lewis Hamilton ergue a bandeira do Brasil após vencer GP de São Paulo da F1, em 2021
Hamilton conta que carregou bandeira do Brasil para trazer esperança
Em entrevista exclusiva ao ge, heptacampeão da Mercedes explicou motivo de gesto semelhante ao de Senna, se disse inspirado pelo espírito do tricampeão e quer contribuir com pilotos mais jovens na F1
Já faz quase um ano desde que Lewis Hamilton venceu o antológico GP de São Paulo de 2021, em Interlagos. E a prova, na qual o piloto da Mercedes foi de 10º à primeira colocação, não saiu do imaginário do público e nem do próprio Hamilton; as lembranças voltam à tona nesta semana da F1 no Brasil, na qual ele ainda foi intitulado cidadão brasileiro honorário. Mas uma dúvida até então nunca fora respondida: por que o britânico carregou a bandeira do Brasil consigo após o triunfo?
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O ge fez essa e outras perguntas ao heptacampeão, que abriu o coração em uma entrevista exclusiva nesta quarta-feira em São Paulo, falando sobre a origem de sua paixão pelo país, a inspiração em Ayrton Senna e representatividade.
– Estávamos passando por uma pandemia, tantas pessoas perderam a vida aqui. Havia uma necessidade de ter esperança. Algo dentro de mim disse “vai, pega (a bandeira)”. E pilotei com ela – revelou.
Lewis Hamilton ergue a bandeira do Brasil após vencer GP de São Paulo da F1, em 2021 — Foto: ELSON ALMEIDA / AFP
A vitória, a penúltima conquistada por Hamilton em 2021, foi ganhando contornos dramáticos antes mesmo do domingo. Correndo com uma unidade de potência parcialmente atualizada, foi removido da classificação de sexta-feira por uma infração técnica.
E não parou aí: na corrida classificatória do sábado, ele subiu de 20º a 5º, mas largou na prova principal apenas em décimo por ter cinco posições a perder como punição por substituir o motor de combustão interna de sua Mercedes. Ainda assim, precisou de 19 voltas para chegar à vice-liderança e, enfim, superar o rival Max Verstappen – que vinha numa sequência de duas vitórias na temporada.
– Quando venci aquela corrida… Tive que mergulhar tão fundo para ficar focado, de alguma forma me recuperar. A punição que eu tinha, começar em último, “não tem como chegar em primeiro”. E de alguma forma superar isso na minha cabeça, cultivar a positividade em um período curto de tempo, vencer… Para mim, foi algo reminiscente de Ayrton (Senna) e seu espírito de corrida. Lembro de quando ele correu aqui, pegou a bandeira e que o Brasil não tinha isso há algum tempo – continuou.
Lewis Hamilton concedeu entrevista exclusiva ao ge às vésperas do GP de São Paulo da F1 2022 — Foto: Divulgação
O Hamilton que havia divido o público local em 2008 ao ser o grande algoz de um brasileiro ficou para trás, e deu lugar a um piloto cuja missão, para si próprio, vai além dos feitos dentro das pistas. E o gesto eternizado pelo ídolo Senna concretizou, de vez, a aceitação da maior parte dos fãs do país.
O titular da Mercedes sempre nutriu grande admiração pelo Brasil, terra natal do tricampeão Senna. Mas fatores como a diversidade da população e o próprio triunfo em Interlagos, sob forte comoção e apoio dos fãs presentes, estreitaram ainda mais os laços entre ele e o país.
“É muito difícil explicar o amor que senti. Crescendo na Inglaterra, comecei a acompanhar o Ayrton Senna. Pelos olhos dele, pela paixão que ele tinha, entendi do que o Brasil se trata. Foi quando descobri a bandeira, via a paixão, os torcedores na TV. Vi o documentário dele e todo o amor que havia por ele aqui. Obviamente, vim para cá e disputei corridas. Pude facilmente sentir sua presença, sua aura. Conheci brasileiros antes de chegar à F1, pelo mundo todo, que só falavam do Ayrton. Embarquei nessa jornada com as pessoas daqui, acho que me aproximei mais e mais. É um lugar onde sempre me senti bem-vindo, porque é muito diverso. Há muitos lugares e corridas onde você vai, na maioria, e é a única pessoa racializada. Então é legal ver isso”, celebrou o heptacampeão.
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Lewis Hamilton visita projeto social no Morro da Providência, Centro do Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/Twitter
O Hamilton que teve, na juventude, um piloto estrangeiro e diferente de si como sua maior referência, hoje pode ser um modelo especialmente para crianças cujas origens – pertencentes a grupos minoritários – se assemelham com as suas. Ainda nesta semana, o piloto da Mercedes visitou o Morro da Providência no Rio de Janeiro e recebeu crianças do projeto social Gerando Falcões, em São Paulo.
E além de defender a representatividade e crer que seu “eu” criança sorriria ao ver o homem que se tornou, o britânico ainda expressou a intenção de inspirar a nova geração de pilotos, com a qual tem dividido cada vez mais a pista na F1 atual.
– Gosto de pensar que quebrei toda regra que alguém colocou nesse esporte em termos de como você tem que viver a vida, como tem que se vestir. Ninguém mais no nosso esporte poderia usar tranças, ou cabelo afro. Mas quando cheguei na pista, criei meio que uma “passarela”. Agora os pilotos podem chegar sendo eles mesmos, se sentindo menos julgados. Espero que esses jovens entendam que há muito poder na voz deles, porque eu não percebi quando comecei – comentou Hamilton.
Lewis Hamilton recebeu título de cidadão honorário do Brasil antes do GP de São Paulo da F1 2022 — Foto: EVARISTO SA/AFP via Getty Images
Confira a entrevista exclusiva com Hamilton na íntegra:
Você é um dos pilotos mais celebrados no Brasil, e agora é até um cidadão honorário. Um dos pontos altos do seu relacionamento com o país aconteceu em 2021, quando pegou a bandeira após vencer em Interlagos. O que passou pela sua cabeça no momento?
“Ótima pergunta. Acho que é muito difícil explicar o amor que senti. Crescendo na Inglaterra, e com o Brasil tão distante, comecei a acompanhar o Ayrton Senna. Pelos olhos dele, pela paixão que ele tinha, entendi do que o Brasil se trata. Foi quando descobri a bandeira, via a paixão, os torcedores na TV. Vi o documentário dele e todo o amor que havia por ele aqui. Obviamente, vim para cá e disputei corridas. Pude facilmente sentir sua presença, sua aura. Conheci brasileiros antes de chegar à F1, pelo mundo todo, que só falavam do Ayrton.
Embarquei nessa jornada com as pessoas daqui, acho que me aproximei mais e mais. É um lugar onde sempre me senti bem-vindo, porque é muito diversos. Há muitos lugares e corridas onde você vai, a maioria, e é a única pessoa racializada. Então é legal ver isso.
Quando venci aquela corrida… Tive que mergulhar tão fundo para ficar focado, positivo, de alguma forma me recuperar. Foi um dos momentos realmente especiais, que vivi algumas vezes na minha carreira, quando parece tão impossível se recuperar vindo da última posição. A punição que eu tinha, começar em último, ‘não tem como chegar em primeiro’. E de alguma forma superar isso na minha cabeça, cultivar a positividade em um período curto de tempo, vencer a corrida.
Para mim, foi meio que reminiscente de Ayrton e seu espírito de corrida. Lembro de quando ele correu aqui, pegou a bandeira e que o Brasil não tinha isso há algum tempo. Estávamos passando por uma pandemia, tantas pessoas perderam a vida aqui. Havia uma necessidade de ter esperança. Algo dentro de mim disse ‘vai, pega’. E dirigi com ela. Foi um momento de muito orgulho para mim, honestamente. Havia algo naquela experiência muito conectado a um amor divino, todos estavam sentindo.”
Lewis Hamilton reproduziu gesto de Ayrton Senna com a bandeira do Brasil após vitória no GP de São Paulo da F1 — Foto: AFP
Sua luta pela diversidade no automobilismo inspirou projetos de inclusão e uma nova geração de pilotos. Como acha que o pequeno Lewis, que veio do kart e passou por muito antes de assinar com a McLaren, olharia para o Lewis heptacampeão?
“Tento me imaginar enquanto criança, porque vejo… Hoje estive no Rio, numa favela, e vejo tanto de mim nas crianças. Todos nós já fomos crianças que só se importavam com diversão, rir, e as crianças são incríveis. Eu era muito tímido, mas muito focado. Sabia do que gostava ou não. Lá atrás, eu tinha o Ayrton para me inspirar. Ele não se parecia comigo, mas de alguma forma achei tanta inspiração nele. Agora, tomara que aquela criança possa ver alguém que se parece com ele, as coisas que superei, o que estou fazendo. E perceba, seja um pequeno menino ou menina, que há um lugar.
Representatividade é tão importante, e às vezes se você não vê é quase impossível acreditar que você pode. É por isso que precisamos de mais mulheres no nosso esporte, na vanguarda, Precisamos de uma mulher piloto de Fórmula 1. Quando isso acontecer, será incrível. Espero que ele (pequeno Lewis) esteja orgulhoso, que veja com um sorriso.”
Com a aposentadoria de Sebastian Vettel, a F1 perde um veterano de peso enquanto dá oportunidades para novos talentos entrarem. Você é um dos pilotos mais experientes do grid. Como sente que pode contribuir com a nova geração?
“Sou um dos pilotos mais velhos aqui, sei os pormenores da indústria. Gosto de pensar que quebrei toda regra que alguém imaginou e colocou nesse esporte em termos de como você tem que viver a vida, como tem que se vestir. Ninguém mais no nosso esporte poderia usar tranças, ou cabelo afro. Mas quando cheguei na pista, criei meio que uma “passarela”. Agora os pilotos podem chegar sendo eles mesmos, se sentindo menos julgados.
Espero que esses jovens entendam que há muito poder na voz deles, porque eu não percebi quando comecei. Não sabia que era algo que podia usar em prol de mudanças positivas. Por mais que eu me importasse com muitas coisas, não sabia sobre o que deveria falar ou como fazê-lo. Então torço para que, com o que faço hoje, eu possa esperançosamente mostrar o caminho para esses jovens. Mostrar que está tudo bem cometer erros, mas seja você mesmo e não mude por ninguém.”
Infos e horários do GP de São Paulo – F1 2022 — Foto: Infoesporte
Por Bárbara Mendonça e Bruna Rodrigues — São Paulo
Ge.globo.com