Esporte
Soraia André, pioneira dos tatames brasileiros, ensinando judô
Do ferro para alisar cabelo ao quimono preto: a luta de Soraia André dentro e fora do tatame
Dona de 10 títulos nacionais e três medalhas em Pans, judoca negra da periferia conta ter sofrido retaliações por criticar a confederação e acabou vendo sua carreira ser interrompida precocemente: “Não consegui lidar com isso e fui parar num hospital psiquiátrico”
O judô é uma arte marcial japonesa fundada pelo mestre Jigoro Kano que significa “caminho suave”. Mas nem sempre a pessoa que se torna uma judoca vivencia essa suavidade. A realidade muitas vezes é bem diferente quando se trata de uma mulher, negra, da periferia, nos anos 60… Nascida em 1964 em uma comunidade pobre no bairro Casa Verde, na Zona Norte de São Paulo, Soraia André foi uma desbravadora dos tatames brasileiros. Só de praticar a modalidade, já estava quebrando barreiras: as mulheres eram proibidas de lutar segundo o decreto-lei 3199/65 da Ditadura Militar.
Dona de 10 títulos nacionais, um ouro e dois bronzes nos Jogos Pan-Americanos (Indianápolis 87, Caracas 83 e Havana 91), ela participou de duas Olimpíadas – em Seul 88, quando o esporte entrou como demonstração para mulheres, ficou em quinto lugar – e em Barcelona 1992, terminou longe do pódio. Em 1993, foi cortada da seleção, segundo ela, como retaliação após criticar a Confederação Brasileira de Judô. O luto pelo fim de sua própria carreira se transformou em protesto: ela tingiu um quimono de preto em uma seletiva nacional, no Rio de Janeiro. A judoca diz que virou persona non grata da seleção, entrou em depressão e foi internada em um hospital psiquiátrico. Mas sobreviveu.
Hoje, sua luta diária é por sua construção como negra. Na época em que protestou, não sabia que o preto do quimono não era de luto, mas de renascimento da própria negritude.
– Eu pensei nisso faz pouco tempo: “Eu não sou mais quem vocês pensam que eu sou”. Eu morri (como judoca profissional), mas eu nasci (como negra). Faz todo o sentido.
RACISMO RECREATIVO: “SÓ SEI QUE DOÍA NA ALMA”
Não foi fácil para o pai de Soraia encontrar uma academia para que ela treinasse. Afinal, as mulheres eram proibidas de praticar o esporte. Mas, quando ele enfim achou, começou o “martírio” da filha.
– Meu medo maior era que eu fosse brigar e terminasse em confusão como toda briga na comunidade. Meu pai havia tentado ser boxeador na época do Eder Joffre e começou a buscar. Um dia ele achou. Era um universo diferente. Parecia uma igreja, tinha velas, tinha a foto do sensei Jigoro Kano, todos orientais, falando japonês. Foi um choque. Meu pai falou: “vim trazer minha filha para treinar”, e o professor disse que não tinha judô para mulheres. Mas a gente via as meninas treinando. Eram 12. “Ah, mas essa é filha de fulano, essa é filha do outro”. E meu pai, bravo: “essa é minha filha”. Imagina um homem negro de mais de 1,80m? Me deixaram treinar. Aí começou meu martírio.
– Tinha 11 para 12 anos, pequena, negra do cabelo duro, como dizia a música. As japonesas gargalhavam, punham a mão no meu cabelo e morriam de rir. Eu me sentia mal, não queria mais ir, falava com minha mãe. É muito duro quando você tem seu biotipo como motivo de piada. Hoje sei que tem nome porque eu estudo: chama-se racismo recreativo. Eu pequena não sabia que era racismo, nem que era recreativo. Só sei que doía minha alma.
– Eu pedia para minha mãe: “Não quero mais ir”. Ou então pedia para dar um jeito no meu cabelo. Chamavam de Bombril, de palha de aço, diziam que iam me jogar para o alto e colocar velcro para eu ficar pendurada. Só quem passa sente, talvez eu falando não dê para dimensionar. Minha mãe alisava meu cabelo com um pente de ferro que ia no fogo e na minha cabeça. Eu pensava que aquilo doía tanto, mas se a gente tivesse uma balança para pesar a dor, a dor daquele pente de ferro com fogo na minha cabeça doía menos que essa esculhambação.Era muito dolorido. Minha alma doía, mas ao mesmo tempo eu ficava feliz que saía da comunidade e ia para lá.
Estar na academia era uma forma de Soraia fugir da realidade da comunidade, onde “tudo era muito caótico e dolorido”.
– Como em toda comunidade, vivenciava a privação. Saía com minha irmã de porta em porta pedindo esmola. As pessoas davam comida vencida, e eu tenho uma cena muito forte da minha mãe escolhendo o feijão, e o bicho subindo pelo braço dela. Ou eu ficava na comunidade me submetendo a isso, ou eu ia para o dojô onde as pessoas iam rir de mim. A gente vivia todo tipo de desrespeio. Criança e adulto era tudo misturado, não tinha respeito com as crianças. Tudo era muito caótico, dolorido, era abuso físico, psicológico, sexual. Fui abusada na infância na comunidade. Era correr do espeto e cair na brasa. Na comunidade, as dores eram físicas. Na academia, era a dor da alma, mas acho que compensava, porque eu brincava, dava cambalhota, fazia estrela. Tinha como um recurso meu corpo bailando. A gente faz uma opção. Eu pensava: “vai doer, mas o que vai doer menos?”.
– Fiz uma opção de sofrer menos. Falo da minha mãe alisando meu cabelo, do pente de ferro doendo, e eu preciso falar da história, porque a história se repete: no navio negreiro, algumas mulheres matavam seus filhos para que eles não sofressem a dor do aprisionamento, da escravização. Então é o cuidado.
– Minha mãe me falava: “vai sofrer, vai doer, mas vou livrá-la dessa dor da alma que ela com certeza passou”. Eu às vezes penso que não vou me emocionar, mas me emociono ainda… Então estou viva, né? Contei minha história muitas vezes, já escrevi, já recontei, mas quando vou passando por ela, sobretudo nesse momento onde estou mais consciente, é dolorido. Mas acredito na cura pela fala, porque sou psicóloga. Sei que, quanto mais você fala, mais elabora suas questões.
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JAPONEGRA: “ESTAVA NUM AMBIENTE EM QUE EU NÃO PODIA SER NEGRA”
Muitas vezes, em sua trajetória, a judoca precisou abraçar sua dor, como quando, por exemplo, transformou o bullying que sofria por parte das japonesas na academia quando criança em seu apelido e até lançou um livro com ele. Japonegra.
– Junto com o bullying que eu sofria, elas me chamavam de Japonegra. Quando alisei o cabelo, elas passaram a falar que eu era uma japonegra: “Agora você parece com a gente”. É um nome que já vem comigo desde 1976. Hoje eu falo que é meu personagem. Acabei construindo por conta de ter que aprender a falar em japonês. Não queria nem aprender judô. Aí junto com isso tive que aprender a falar em japonês, tive que aprender a gargalhar com a boca mais fechadinha.
– Toda minha identidade de “negona”, aquela “bocona” (mostra a boca aberta), tive que “shhh” (faz gesto como que fechando a boca). Eu estava num ambiente em que eu não podia ser negra.
– Vou até te falar de um episódio que aconteceu, teve um campeonato no Rio. Eu era “patrocinada”. Me pagavam para usar um nome de um banco nas costas. Davam 10 reais. Era roubada, vamos usar o termo certo. Meu povo é roubado até a última hora! Eu não sabia e aceitei. Nesse campeonato, essa empresa alugou um ônibus. Minha família foi como? Com tamborim, reco-reco, pandeiro. Chegou na área de competição e falavam: “vocês não podem fazer isso, aqui não é lugar, né”… Eu assim: “Aqui não é lugar?”. Imagina a confusão? Mas essa é minha família, meu povo, meu jeito de manifestar a alegria. Só que eles foram proibidos. Mais um roubo, né?
O QUIMONO PRETO: “PARA MIM, ERA A MORTE”
O judô ensina a cair e levantar. Soraia caiu. Inúmeras vezes. Mas a mais dura delas, mesmo para quem já tinha sofrido tanto na pele, foi quando perdeu o que mais amava: sua arte. Após a participação em Barcelona 1992, que não foi como esperava, ela decidiu lutar pelos direitos dos atletas e disse que indagou a Confederação Brasileira de Judô sobre uma verba que os judocas deveriam receber pela participação em competições.
– Perguntei para os dirigentes: “E a nossa verba?”. Eles ficaram loucos da vida. Era para ser uma verba nominal, uma carta escrito “Soraia André”. Quando fui pedir essa verba, estava tudo misturado, nem no saquinho estava. Eu ouvi assim: “a cabeça dela vai rolar”. Pensava que vinha uma supermulher para me bater. Iria entender que era a hora de parar. A seletiva (para a seleção brasileira) foi no comecinho do ano (1993). Passei as Festas sem comer muito. Chegou um telegrama da CBJ: “A partir desse ano, mulheres de 28 anos não poderão mais competir (pela seleção)”. Falei: “Não pode ser. Por que não 30? Por que não 25? Só porque eu tinha 28?”. Fiquei amargurando. Como podia dar uma resposta sem fazer algo ruim? Para mim, aquilo era a morte. E morte você usa que cor? Tingi o quimono de preto. Lembro de estar com minha mãe no tanque. Para mim, eu estava preparando minhas vestes de morte. Minha mãe falou: “Você tem certeza que vai fazer isso?”. Peguei o ônibus e fui. Quando falaram que já podíamos nos preparar, fui para o vestiário, coloquei o judogi preto, subi a arquibancada. Não entrei na área de competição por respeito. As moças que me viram levaram um susto muito grande, era como se não estivessem nem me vendo. Era aquela coisa: “vou me associar à Soraia e vai sobrar para mim”. Fiquei sentada com minhas medalhas. Calada.
– Um repórter veio falar comigo: “Soraia André, o que você está fazendo aí fora?”. Eu falei: “Se eles me mataram, estou vestindo meu luto. Estou morta”. É muito forte, mas que bom que eu posso contar, que posso lembrar disso e saber que não é minha morte. Hoje sei que não era, muito pelo contrário. Se a gente for pensar em morte e vida, de algo morrer para algo começar, não tinha essa compreensão. Eu queria ter tido a oportunidade disputar mais uma Olimpíada, ou até ter perdido a vaga para alguém, para a pessoa ir, sabe?
Na época, Soraia atribuiu ao preto o significado de luto. Hoje, entretanto, ela atribui também à sua própria negritude. Na verdade, seria um renascimento.
– Pensei nisso faz pouco tempo: “Eu não sou mais quem vocês pensam que eu sou”. Eu morri, mas eu nasci (como negra). Faz todo o sentido. Quando ganhamos o Pan, por exemplo, eu e a Monica Angelucci, ela loira, pele branca, lutava no 48kg. As duas ganharam o Pan, um ano antes da Olimpíada. E quem foi convidada para fazer comercial? Adivinha? É muito estrutural esse racismo, esse preconceito. É tão natural… Eu não sei se vi numa tese sobre mim. A pessoa falava que a Monica representava a graciosidade, era mignon, branca, pequena, bonitinha, ajeitadinha… E eu era o outro lado: feia, gorda, porque era do meio-pesado, preta – lembrou, citando a brasileira Monica Angelucci que, como ela, foi ouro em Indianapolis 1987, só que no -48kg.
A INTERNAÇÃO: “NÃO ESTOU LOUCA”
Soraia relembra que, depois do primeiro telegrama da CBJ, chegou mais um. A seleção brasileira tinha ido para São Paulo para um treino aberto, e ela foi para lá no intuito de treinar também. Ela conta que a mensagem dizia: “Onde a seleção estiver, não ponha seu pé”.
– Passei meus dias muito mal. Meu modo de existir no mundo era como judoca. Não consegui lidar com isso e fui parar num hospital psiquiátrico. Não fiquei muito tempo, mas não consigo dimensionar. Quando você entra em outra dimensão da psique, você perde a noção do tempo. Se fiquei um dia, se fiquei meia hora, era muito tempo para ficar. Quando cheguei lá, tomava sedativo, porque gritava: “não estou louca”. Quanto mais gritava, mais sedativo davam.
– Fui parar ali porque, num certo dia, eu acordei, coloquei meu judogi e me aqueci. Minha mãe perguntou o que eu estava fazendo, achou que estava brincando. Passaram horas. Eu dizia: “vão me chamar daqui a pouco, vou lutar”. Meu pai e minha mãe viram que não era normal. Dizem que dei um golpe nele. Chamaram pai de santo, pastor, padre, lembro de homens com a Bíblia: “Sai dela”. Jogavam água benta. Não tinha mais jeito. No hospital, via todo mundo solto, um falando que era Jesus, um Napoleão, e eu dizendo que não estava louca. Me prenderam. Apanhei do enfermeiro. Tapa na cara, sabe? Me lembro que, para sair do hospital, clamei a Deus. Minha vó falava para mim que existia um Deus e nunca dei bola. Fui me acalmando conforme gritava: “Deus da minha avó, deixa eu sair daqui”. Hoje creio num Deus que nos dá oportunidade de ser a gente. Talvez tenha sido uma catarse. O enfermeiro veio e me desamarrou. Meus pais foram me buscar. A partir daí, comecei a tentar reconstruir minha vida. Não foi fácil, né? O que eu fazia mais era o judô. Fui buscar outro caminho. Cantei na noite paulista. Continuei dando aula de judô. Me casei, descasei, casei de novo. Fui reconstruindo a Soraia.
A RECONSTRUÇÃO: “ESSE É MEU CHAMADO”
Soraia estudou Psicologia e Educação Física. Seu principal projeto de vida passou a ser a sua construção como negra. Ela cita, inclusive, o livro “Tornar-se Negra”, da psiquiatra, psicanalista e escritora negra Neuza Santos Souza. Nessa obra, a autora mostra a auto-rejeição do negro por seu aspecto exterior e diz que é necessário um “raro grau de consciência para que esse quadro se inverta”. Contudo, quando isso acontece, a cor e o corpo do negro são sentidos como valor de beleza. Foi mais ou menos o que se passou com a judoca.
– Essa forma de pensar: “ah, não grita, não reclama, porque é mimimi”. É uma colonização do pensamento. Te falo de mim… Meu engajamento é muito recente. Fui para Angola ano passado para poder me “empretecer”, cavar aí minhas raízes. Quando eu via as ativistas, mulheres na posição que estou hoje, a negra que luta por um povo, até mesmo o movimento negro, eu me indignava: “Pra quê isso?”. Eu não percebia as relações, a sociedade como um todo. Agora percebo em tudo. Minha sobrinha, que é ativista, me fala: “Não tem volta. Você viu? Agora vai ver mesmo de verdade”. E as pessoas falam: “Tudo é isso? Imagina, é coisa da cabeça dela”. Mas eu já estive de um lado onde achava que as pessoas do movimento negro eram demais. Isso faz parte da estrutura. O racismo estrutural quer que eu pense isso. E vou além: no lado de religião, me peguei falando numa live com um amigo meu: “Olha, eu não consigo, ainda na minha mente, ter um anjo negro construído”. É sempre aquele anjo loiro, cabelinho amarelo, olho azul. Não consegui me despojar desse anjo. Não consigo ainda, mas eu vou chegar lá, estou me esforçando.
– Estou numa sociedade extremamente racista. Eu descobri isso. Descobri que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado pelo Estado. É uma sociedade da estrutura homem branco, mulher branca, homem preto, mulher preta. Sou a última da pirâmide.
AS MEDALHAS OLÍMPICAS DE KETLEYN, SARAH E RAFAELA: “ME SINTO TOTALMENTE RESPONSÁVEL”
Se nunca conseguiu subir no pódio olímpico, ela pavimentou, com sua luta e suor, as conquistas de Ketleyn Quadros (bronze em Pequim 2008 e primeira mulher a levar uma medalha olímpica em esporte individual para o Brasil); Sarah Menezes (ouro em Londres 2012 e primeira judoca campeã olímpica); e Rafaela Silva (ouro na Rio 2016).
– Me sinto totalmente responsável. De pioneirismo, de abrir caminho. Eu encontrei com a Sarah num evento que fizemos juntas. E, curiosamente, a Sarah não me conhecia. E eu não faço questão. Trabalhei muito bem isso, na terapia, de estar num lugar e as pessoas não me conhecerem. Eu perguntei para ela: “você conhece Soraia André?”. E ela disse: “Já ouvi falar sim”. Eu falei: “Pois é, sou eu”. Ela estava com a medalha olímpica, e eu disse: “essa medalha é minha, eu sou sua mãe”. Não tem como falar que o judô começou a partir de medalha, não digo nem Sarah, mas na medalha da Ketleyn. Uma vez fizemos uma matéria, eu, Ketleyn e Rafaela (Silva), que era uma criança. Já era algo meio previsível. Tínhamos em comum: três mulheres negras, vindo de comunidade. Era muito antes de Rafaela. Mas eu não fui medalhista olímpica, não sendo, e sendo mulher, negra… Sinto muito, né? Já foi uma luta para carregar a tocha.
Conduzir a tocha olímpica dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, para Soraia, era uma oportunidade de se sentir participando novamente de uma Olimpíada. Mas não foi nada fácil.
– Nunca fui chamada nem para limpar o chão da seleção. A Olimpíada era no Brasil. Pensei que ia ser convidada para assistir ou para carregar a mala de alguém. Foi uma luta para conduzir a tocha olímpica. Teve um movimento: “todo atleta olímpico tem direito a carregar a tocha”. Os amigos postavam, e o COB: “tudo bem”. Perguntaram onde queríamos conduzir. Escolhi Santo André, SP ou Rio de Janeiro. Recebi minha convocação para conduzir a tocha… em Chapecó, Santa Catarina (risos). Eu queria muito, sabe? Era uma maneira de participar. Meu marido falou para a gente aproveitar e passear. Conduzi a tocha em Santa Catarina. Olha, eu estava tão bem representada lá: o povo galego com olho azul de bola de gude (risos). Eu não queria conduzir? Aí depois de 20 dias, a tocha olímpica passa em Santo André. Trabalho na Prefeitura de Santo André, fiz cordão de isolamento, distribuía água. No dia em que ela passou em Santo André, eu estava fazendo isso. Isso é Brasil. Não duvido nada desse país.
Soraia André falou sobre a questão de se posicionar no esporte e que, como sua própria história mostra, “tudo tem um preço”. Quando ela se posicionou, foi cortada da seleção. “Simples assim”, em suas palavras. Recentemente, houve uma grande mobilização, até por parte de esportistas, depois do assassinato brutal de George Floyd, ex-segurança negro de 46 anos, em Minneapolis, nos Estados Unidos, por um policial branco. As manifestações tomaram conta dos EUA e do mundo, resgatando a hashtag #BlackLivesMatter (do inglês, #VidasNegrasImportam). Mas a judoca relembra que, no Brasil, diariamente os negros são vítimas da brutalidade policial e, muitas vezes, as pessoas se calam.
– Nós fomos educados para ser colônia. É diferente como aconteceu aqui a pseudolibertação. Foi um tratado, um bem bolado, um combinado. E logo em seguida veio a “Lei da Vadiagem”. O negro que era pego na rua era preso. A gente não aprendeu, não foi luta armada: “eu sei quem eu sou”. Logo na sequência (do fim da escravidão) nos EUA, o negro americano teve acesso à universidade. Aqui demorou muito para acontecer isso. Mais recentemente teve a questão das cotas. Ao negro brasileiro não foram dadas as mesmas condições. A gente aprende que não pode falar: somos silenciados há muito tempo. Para mim, eu começar a falar foi um parto. Eu pensava: “vou falar, mas vou causar incômodo”.
– Um filho de uma amiga minha foi espancado por um policial e está em depressão. Ele estava vindo do trabalho e o policial, por prazer, espancou o menino. Ele disse: “vou ser bandido mesmo”. Pedi para ela me mandar ele, vou atendê-lo sem cobrar. Tenho obrigação. Um jovem negro com uma camiseta, uma blusa com capuz vai ser morto, é bandido. Quem tem a pele clara, os não negros, não precisam se preocupar com isso. Uma preocupação da minha sobrinha na formatura dela, ela de black power, é se o cabelo entraria no capelo.
Quando esteve nas Olimpíadas de Seul, na Coreia do Sul, eram comemorados os 100 anos da abolição da escravatura, que Soraia chama de “pseudolibertação dos escravizados”.
– Em 1988, quando eu estava indo para a primeira Olimpíada, estavam comemorando 100 anos da pseudolibertação dos escravizados. E eu pergunto: nesse meio tempo, quanto sangue foi derramado? Quanto custa uma gota de sangue? Uma mão cortada? Um pé cortado? Quanto custam crianças viajarem num navio e serem mortas pela mãe? É meu povo. Eu não fui para a Olimpíada em 88 porque fui. Quanta coisa teve antes? Penso na ancestralidade, na minha mãe, empregada, levando comida da casa das patroas que sobrava para a gente comer. É muita história.
O RENASCIMENTO EM ANGOLA: “PISEI EM LUANDA, RESPIREI E ENTENDI”
Se nasceu em 1964, Soraia André encontrou suas raízes em 2019. Foi o ano em que viajou para Angola, na África.
– Tem um professor lá de Angola, o Fernando, que vivia me convidando. Eles fazem judô em cima de uma lona, em cima da terra. Eu pensava: “o dia que que eu tiver quimonos, tatames, eu vou para levar para vocês”. No fim de 2018 para 2019, ele me disse: “a gente não precisa de roupa aqui, quimonos rasgam, a gente precisa do seu abraço, que você olhe para a gente, diga que a gente exista”. Falei: “Chega, vamos lá”. Sei o que é ser invisibilizado. Quando cheguei em Luanda, quase cantei na rua: “Eu voltei agora para ficar”. Pensei: “sou daqui, nunca devia ter saído”. Pisei em Luanda, respirei e entendi. “Estou de volta para meu aconchego”. A gente não sabe de onde vem. Não tive como construir minha árvore geneálogica para falar. Fui até um ponto. Meu bisavô foi escravizado, mas veio de onde? E lá em Angola eu entendi que vinha de lá. De falar para você dessa experiência, sinto dor de parto. Fui gerada nesse lugar.
– Dei algumas aulas. Acham que eu sei judô. Mas o que eles tinham lá… Aprendi muito mais com eles: o sentido de comunidade, que as crianças andam pela rua sozinhas, e ninguém faz nada para elas. Fui lá fingir que ia ensinar judô para eles. Ensinei um ou dois golpes e aprendi muito. Vi que não precisa de muita coisa para viver bem e ser alegre. Eles riam muito. Saber que eles não têm o que comer, sabe? Vi as crianças trabalhando, com machado nas costas, indo buscar água, indo para a plantação. Me chamavam de mãe. Elas chamam todo mundo de pai e mãe. Toda pessoa mais velha é pai e mãe de toda pessoa mais velha. E isso faz toda a diferença. Uns cuidam dos outros.
O intuito da viagem era que a experiente judoca brasileira ensinasse um pouco da arte marcial para os meninos angolanos. Mas, segundo Soraia, quem aprendeu foi ela.
– Aprendi em Angola que as pessoas mais velhas têm a obrigação de ensinar os mais novos. Existe lá a figura do “soba”. O “soba” é uma figura na comunidade que é o detentor do saber, então ele tem a obrigação de aconselhar. Até numa briga. Na discussão entre marido e mulher, eles levam para ele dar a palavra final. O que eles falam, vão fazer. Ele é eleito. Eu fui para Angola para voltar como uma “soba” de lá.
Soraia André segue sua caminhada, agora na redescoberta de seu eu, como mulher e negra. Como judoca. Como sensei. Como psicóloga. Como brasileira, africana e japonesa.
– Uma analogia também: a bandeira do Japão me representa, o círculo vermelho significa para mim a brasa que nunca se apagou, que queima. Eu agradeço muito. Sou eu também. A bola vermelha que me liga à minha ancestralidade nunca se apagou. Era uma brasa, que estava ali acesa. Por mais que por fora tivesse o branco, na bandeira, por dentro, acendeu, era uma chama que gritava.
Por Gabriel Fricke – Rio de Janeiro, RJ