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No Brasil, em que 44% dos homens e 33% das mulheres de pele escura não completam o ensino médio

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E os brancos com isso? Entenda por que a luta contra o racismo vai muito além dos atletas negros

No Brasil, em que 44% dos homens e 33% das mulheres de pele escura não completam o ensino médio, atletas sofrem com estigmatização, silenciamento e falta de apoio

Em um momento em que as mortes dos meninos João Pedro e Miguel, no Brasil, e George Floyd, nos EUA, trouxeram à tona o debate sobre a questão racial no mundo, a cobrança do posicionamento de jogadores negros também entrou em pauta. A questão, no entanto, não é tão simples. E é nesse ponto que abrimos outro questionamento: e o que os brancos e as brancas têm feito contra o racismo?

No país em que 44% dos homens e 33% das mulheres de pele escura não completam o ensino médio (segundo os números do IBGE), parece um contrassenso exigir mobilização apenas de atletas negros, especialmente em uma sociedade racista, como explica Roberta Pereira da Silva, pesquisadora sobre racismo no futebol e mestre em Serviço Social pela PUC-SP.

– O espaço do futebol profissional é um local em que se opera o racismo institucional. Nesse sentido, é complicado cobrar desses jogadores um posicionamento, uma vez que não se garante que não sofrerão represália. Em que pese a cobrança sobre os jogadores negros, que também se cobre dos jogadores brancos.

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Reinaldo, ídolo do Atlético-MG e ativista do movimento negro — Foto: Mauricio Paulucci

Reinaldo, ídolo do Atlético-MG e ativista do movimento negro — Foto: Mauricio Paulucci

O medo de o posicionamento trazer consequências para a carreira é também um dos fatores que silenciam os atletas negros. Sem representatividade nos cargos de liderança dos clubes e longe de ter poder de decisão nas entidades que regulamentam o esporte, os negros não têm sua voz escutada. Este é o cenário que destaca o historiador Ricardo Pinto, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

– Como, em geral, são brancos que dominam a estrutura, se um jogador negro se posiciona de forma contundente e insiste sobre o tema, em geral, os clubes e dirigentes passam a enxergá-lo como um “problema”. Se fizermos uma pesquisa rápida sobre os jogadores que se posicionaram abertamente sobre o racismo, iremos verificar que suas carreiras acabaram sendo “prejudicadas” ou marcadas apenas por esse fato. Para avançarmos nesse aspecto, precisamos de um movimento conjunto de toda a estrutura esportiva. Não pode ser um tema apenas para o jogador negro.

“O homem branco ainda acredita que o racismo é um tema para o negro e esquece que quem criou o racismo foram eles (brancos)”, completa o historiador.

Grafite fala das dificuldades para um jogador negro se posicionar contra o racismo

Grafite fala das dificuldades para um jogador negro se posicionar contra o racismo

A fala do pesquisador traz de uma forma acadêmica o que Ludmila, atacante da seleção brasileira e do Atlético de Madrid, sentiu na pele. Vítima de racismo, em 2019, a atleta expõe as incertezas que atormentaram a cabeça quando precisou enfrentar as ofensas.

– Tive muito medo de me posicionar. Teve uma época que as pessoas falavam que era muito “mimimi”. A gente vem há anos brigando por essa causa. Às vezes acontecem coisas que as pessoas consideram pequenas, mas que nos machucam para sempre. Já tive esse medo, mas agora não. Vejo que as pessoas negras estão cansadas desse tratamento. Acho até que os últimos acontecimentos nos EUA e no Brasil me deram um pouco de coragem para brigar pela nossa cor.

Atacante Ludmila durante o confronto entre Brasil e China — Foto: Daniela Porcelli/CBF

Atacante Ludmila durante o confronto entre Brasil e China — Foto: Daniela Porcelli/CBF

Estigmatizar a vítima e limitá-la a essa condição também é um fator de silenciamento. O ex-atacante Grafite destaca que há o receio entre os jogadores de se tornarem marcados por conta de um caso de racismo ou pelo posicionamento antirracista. A preocupação é que a carreira passe a ter sua narrativa resumida ao tema.

– Da mesma forma que eu gostaria que o Neymar e outros atletas fossem mais incisivos, eu entendo quando não são. Você vai ver as pessoas cobrando ele para falar, mas entendo quando não falam, porque isso acaba se voltando contra eles. Quando você começa a perder gols, a torcida vai falar que você está focado na causa do racismo e esquecendo de jogar futebol. No meu caso, não dei prosseguimento ao caso porque, quando ocorreu, as pessoas só falavam do racismo e não falavam dos gols que eu fazia, dos gols que eu perdia – explica Grafite.

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A luta do negro brasileiro contra o racismo não é novidade. No futebol, personagens como Reinaldo, Paulo Cezar Caju, Lula Pereira,Tinga, Cristóvão Borges e Aranha decidiram não se calar diante da discriminação. Se no passado acabam prejudicados pelo posicionamento, a briga é para que o destino de atletas da atualidade não seja o mesmo.

Pesquisador e fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho aponta que o apoio aos atletas gera um ambiente de confiança para que eles não se calem diante do racismo. E o posicionamento de jogadores como Gabigol, Richarlison, Paulinho e Éverton Ribeiro é fundamental para que essa rede de proteção seja criada.

– O silenciamento do atleta negro é algo muito sério. Os jogadores se sentem acuados dentro do sistema, porque não têm apoio dos clubes e muitas vezes se sentem intimidados. Pontuado isso, acho importante que a gente construa uma rede de apoio para os atletas, ao mesmo tempo que é fundamental que, cada vez mais, os atletas passem a se posicionar. Nós precisamos ir conquistando esses espaços.

Taison, do Shakhtar Donestk, sofreu racismo em jogo contra Dínamo Kiev, e ainda terminou expulso e punido com suspensão por reagir — Foto: Reuters

Taison, do Shakhtar Donestk, sofreu racismo em jogo contra Dínamo Kiev, e ainda terminou expulso e punido com suspensão por reagir — Foto: Reuters

Mas qual o papel dos atletas, sendo eles negros ou brancos? Qual a parcela das instituições?

A resposta, segundo o historiador Ricardo Pinto, nasce de uma palavra: posicionamento. Além da necessidade de os jogadores se informarem, Ricardo destaca a isenção como “uma das ferramentas mais cruéis do sistema”.

“A isenção alimenta um processo de silenciamento e dor muito grande. Reconhecendo que vivemos um momento de cobrança absoluta, precisamos ouvir as vozes que foram caladas durante toda a história.”

O apoio de atletas e instituições é essencial no combate ao racismo, mas ainda é pouco adotado dentro de campo. Em dezembro de 2019, a partida entre Rayo Vallecano e Albacete, pela Segunda Divisão da Espanha, foi suspensa após torcedores do Rayo chamarem de nazista o jogador Zozulya, ligado ao movimento de ultra direita formado por neonazistas na Ucrânia.

A decisão do árbitro espanhol foi respaldada pelos dois clubes, pela La Liga, que organiza o torneio, e pela Real Federação Espanhola de Futebol. A mobilização, no entanto, não costuma se repetir em jogos com registros de preconceito racial.

– Até mesmo os clubes que divulgam lutar contra o racismo pouco efetivamente fazem para combater o sistema. Tudo fica, em geral, no campo da retórica ou de entrar com faixa em dia de jogos. Precisamos avançar nisso de forma mais robusta, movimentando as estruturas. Ou seja, cobrar ações concretas e efetivas das instituições e seus dirigentes. Eles precisam assumir o papel deles nesse debate – finaliza Ricardo Pinto.

Afinal, o racismo não é esporádico, lembra o auxiliar técnico do Fluminense, Marcão. Está enraizado na sociedade. Motivo pelo qual ele reforça: é preciso transformar o esporte em meio de luta, além de buscar o exemplo vindo das autoridades, para combater uma violência que, há séculos, age, agride e mata de forma estrutural no Brasil e mundo afora.

“Temos que gritar. Precisamos dar as pessoas o nosso conhecimento igualitário. Hoje é o Marcão que está falando, e você que está escrevendo na imprensa, acho fundamental publicar toda hora. Não falo só do racismo, também me refiro à homofobia, ao feminicídio. Tem que ser agora. O esporte é muito forte. É um megafone para isso, uma bandeira imponente para a gente estender e defender. Os casos aqui no Brasil são pesados, temos que apresentar penas contundentes para isso, vir o exemplo de cima, tomar uma decisão forte contra esse tipo de preconceito.”

Neste domingo, o Esporte Espetacular também traz uma matéria especial sobre o racismo no esporte.

Por Elton de Castro e Jamille Bullé — Recife / Globoesporte.globo.com

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